Inauguração de terminal com VLT, BRT e ônibus e reforma da Estação Leopoldina criam expectativa de dias melhores para área onde profeta deixou seus escritos nas pilastras de viaduto
“Gentileza gera gentileza” é a frase mais famosa do Profeta Gentileza, um personagem do Rio de Janeiro, um andarilho que circulava pela cidade e pela vizinha Niterói. Ele se apresentava como representante de Deus, anunciava novos tempos, criava provérbios e máximas, sempre falando de amor, de bondade, de gentileza. José Datrino, seu nome de batismo, sustentava a família com três caminhões para fretes até que, no Natal de 1961, disse ter recebido um chamado divino para que deixasse tudo que possuía e vivesse uma missão. Virou o Profeta Gentileza, passou a ser conhecido e reconhecido nas ruas e praças do Rio. Passou a usar uma túnica branca, com algumas de suas frases, e deixou cabelo e barba crescerem – a imagem de figura mística ficou reforçada.
No final dos anos 1970, o Profeta Gentileza deixou 56 escritos, numerados e pintados em verde, amarelo e azul sobre o cinza das pilastras do Viaduto do Gasômetro, uma ligação estratégica entre a Avenida Brasil, principal via de entrada da cidade pela Zona Norte, e o Centro do Rio – uma legítima intervenção artística urbana, que o tornou ainda mais popular. “Não pense em dinheiro. Ele é o capeta. Cega a Humanidade e leva para o abismo” – está escrito no número 44. “Este é o Profeta Gentileza que gera gentileza, com amor e paz, para um Brasil e um mundo melhor” é a frase do número 3. As frases se misturam e nem sempre a língua portuguesa é respeitada, mas, quando morreu em 1996, aos 79 anos, o profeta já estava incorporado à cultura da cidade: sua “Gentileza gera gentileza” estampa camisetas, bolsas, azulejos, placas.
Essa breve história do profeta nos leva numa viagem até o Terminal Intermodal Gentileza – como foi batizada a estrutura criada pela Prefeitura do Rio para receber a estação final de duas linhas do VLT, o BRT Transbrasil e 22 linhas de ônibus. Tenho o privilégio de poder circular pelo Rio de transporte público quase o tempo todo; um privilégio ligado a outro privilégio – o de morar em área próxima a uma estação do metrô e onde a maioria dos ônibus roda com o ar condicionado ligado. Os privilégios são sinônimo de desigualdade: transporte público de massa de qualidade, para todos, é o terminal de embarque para uma cidade democrática.
O Rio de Janeiro – como todas as metrópoles brasileiras – cresceu sem privilegiar o transporte público; aqui entregue a um monopólio perverso de empresários de ônibus. O sistema ferroviário do Grande Rio – que chegou a transportar dois milhões de passageiros por dia e hoje leva 600 mil – foi seguidamente sucateado; a polícia estadual, especialista em produzir tiroteios nas favelas, é incapaz de reprimir os roubos diários de cabos da rede ferroviária. O transporte público urbano e suburbano devia ser amplamente subsidiado, com subsídios financiados por pesada taxação no transporte individual, nos carros queimadores de combustível, multiplicados nas ruas por essa praga urbana disseminada pela Uber.
Contam com a minha simpatia, portanto, todas as iniciativas pela melhoria do transporte público: foi assim que, em menos de uma hora, com uma viagem de metrô e outra de VLT, atravessei a cidade para chegar ao Terminal Gentileza, construído no local onde, por quase um século, funcionou o gasômetro do Rio, que emprestou seu nome ao viaduto com as pilastras usadas como murais pelo profeta. Nas suas torres, era armazenado o gás consumido pelos cariocas: um paiol de gás, em área estratégica da cidade, podia fazer sentido ao ser inaugurado em 1911, mas já era considerado obsoleto e perigoso muito antes de ser desativado no começo do século 21.
Recém inaugurado, o terminal ainda não está funcionando plenamente – algumas linhas de ônibus ainda não começaram a circular e o próprio BRT Transbrasil funciona apenas no primeiro trecho; a maioria das 80 lojas está fechada. As duas linhas do VLT – para o Aeroporto Santos Dumont e para Praça XV, onde fica o terminal de barcas para Niterói – já estão funcionando, assim como o serviço especial de ônibus executivos que liga o Gentileza ao Aeroporto Internacional Tom Jobim. A estimativa da Prefeitura do Rio é que 150 mil pessoas passem por aqui diariamente. Os murais do Profeta Gentileza nas pilastras do viaduto vizinho, alguns sob a ação do tempo e dos vândalos, estão sendo recuperados.
Para completar a viagem, caminho pouco mais de um quilômetro inspirado em outra boa notícia para a cidade: o acordo entre prefeitura e União para a revitalização do histórico imóvel da Estação da Leopoldina, já tratado aqui neste #RioéRua. O município do Rio vai bancar a reforma do prédio, inaugurado em 1926 e tombado pelo Iphan. A ideia inicial é que a área da antiga estação abrigue um conjunto de prédios do programa Minha Casa, Minha Vida, um centro de convenções e a Cidade do Samba 2, para os barracões da escolas de Samba da Série Ouro (o grupo de acesso). O prédio histórico abrigaria cursos do Instituto Federal do Rio de Janeiro e equipamentos culturais.
O Terminal Gentileza e a nova Estação Leopoldina são novas etapas do projeto de revitalização da Zona Portuária do Rio que começou com a derrubada da Perimetral, que, costumo dizer, é a maior obra do prefeito Eduardo Paes. Sob aquela via elevada, – um monstrengo de concreto em homenagem ao automóvel, que atrapalhava a vista da Baía de Guanabara -, nada florescia. Agora, o Rio de Janeiro tem museus na Praça Mauá, vida boêmia em torno do Largo de São Francisco da Prainha e da Pedra do Sal, eventos nos armazéns do porto, o AquaRio. As ruas vão sendo retomadas; a vida volta.
São poucos os pedestres sob o sol de um dia útil, hoje na Avenida Francisco Bicalho – onde estão o terminal recém-inaugurado e a Estação Leopoldina esperando as obras. Mas vale torcer para ver, em alguns anos, a calçada tomada pelo movimento entre as duas iniciativas – com muita gente (por que não?) desviando para ler as frases do profeta. “Não usem problemas; não usem pobreza; usem amor e gentileza”.