Quem ama os livros não precisa de pretexto para falar de Machado de Assis. Quem é carioca e leitor de Machado de Assis sabe que o Rio de Janeiro é o cenário de seus romances, contos, crônicas – e também não precisa de pretexto para escrever sobre nosso escritor maior. Mas foi em junho que nasceu Machado de Assis, no dia 21 de 1839, 185 anos atrás, no Morro do Livramento, na área central do Rio, perto da Zona Portuária. Foi antes do rádio, da televisão, da internet, da rede social. Mas, 185 anos depois, Machado de Assis é assunto no TikTok, viraliza e tem um livro no topo da lista dos mais vendidos da Amazon.
O livro viral – Memórias Póstumas de Brás Cubas – é um clássico, apontado por muita gente do mundo literário como o melhor já escrito na língua portuguesa. Todos deviam ler, mas, especialmente, todos os cariocas – de nascimento ou de coração – deviam. Como em outros livros de Machado, o Rio de Janeiro está em toda parte. O protagonista cresceu na Rua Mata Cavalos (hoje Riachuelo, no Centro), mora um tempo com a família na Tijuca, tem um casa para encontrar a amada na Gamboa, morre numa chácara do Catumbi – não é spoiler, como o título entrega, são memórias póstumas que conduzem o romance.
Machado de Assis morou a vida inteira – 69 anos – no Rio de Janeiro, poucas vezes saiu da cidade, nunca viajou ao exterior. Abro a esmo uma coletânea de contos do escritor: encontro A Cartomante. “Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante”.
A Rua dos Barbonos é, hoje, a Evaristo da Veiga, que liga a Lapa à Cinelândia, e termina na Rua Treze de Maio, na época do escritor a Rua da Guarda Velha. Em 1884, quando o conto foi publicado, não existia o Theatro Municipal (inaugurado em 1909, entre a Treze de Maio e a Avenida Central, batizada de Rio Branco 1912), nem cinemas na região. A Rua das Mangueiras, para onde seguiu Rita, chama-se hoje Visconde de Maranguape, pequeno trecho de via perto dos Arcos da Lapa. Machado de Assis é assim: inspira uma viagem ao passado do Rio.
Abro uma antologia de crônicas. Está lá, com data de 1893. “Segunda-feira desta semana, o livreiro Garnier saiu pela primeira vez de casa para ir a outra parte que não a livraria. Revertere ad locum tuum — está escrito no alto da porta do cemitério de S. João Batista. Não, murmurou ele talvez dentro do caixão mortuário, quando percebeu para onde o iam conduzindo, não é este o meu lugar; o meu lugar é na Rua do Ouvidor 71, ao pé de uma carteira de trabalho, ao fundo, à esquerda: é ali que estão os meus livros, e minha correspondência, as minhas notas, toda a minha escrituração”.
A Livraria Garnier foi a segunda casa de Machado de Assis durante toda a sua vida adulta; era um local de encontro de escritores e intelectuais, recepcionados pelo francês Baptiste Louis Garnier, responsável pelas primeiras edições de Memórias Póstumas e de Dom Casmurro. A Rua do Ouvidor, onde a livraria estava instalada, era principal rua comercial do Rio de Janeiro no século 19 e ia do mar ao Largo de São Francisco. O nome resistiu aos séculos. E, na obra de Machado, é onipresente: aparece em Helena, em Iaiá Garcia, em Dom Casmurro, em Esaú e Jacó, em Memorial de Ayres. E, pelo menos três vezes, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o livro publicado em 1881 que teve uma explosão de vendas na Amazon em 2024, a partir de uma postagem TikTok.
Essa história talvez servisse de inspiração para Machado de Assis. A escritora e podcaster Courtney Henning Novak – que tem perfis populares no Instagram e no TikTok – tem como temas principais a maternidade (já publicou quatro livros) e a literatura (ela se define como uma traça de livros). Em novembro, Courtney começou o projeto Read Around The World (Leitura em volta do mundo), com a proposta de ler um livro de cada país a partir da letra A. O projeto foi um sucesso nas redes sociais – as curtidas nas postagens no TikTok e no Instagram se multiplicaram.
Mas nada semelhante à postagem no fim de maio quando ela chegou ao Brasil e à Memórias Póstumas de Brás Cubas. “Preciso ter uma conversa com o pessoal do Brasil. Por que não me avisaram antes que este é o melhor livro já escrito? O que vou fazer do resto da minha vida depois que terminá-lo?”. A postagem no TIkTok teve mais de um milhão de curtidas – 1,2 milhão até esta semana (os posts de livros de outros país chegaram, no máximo, a 100 mil likes). A consequência: a versão em inglês de Memórias Póstumas de Brás Cubas se tornou o livro mais vendido da categoria “Literatura Latino-Americana e Caribenha” na Amazon dos Estados Unidos.
E Courtney Novak ficou mesmo obcecada por Machado de Assis e fez um breve desvio na sua sequência de livros por países; depois de ler um do Burundi, ela voltou ao escritor brasileiro. Na semana passada, ela publicou uma série de vídeos no TikTok. “Eu trapaceei na minha busca #readaroundtheworld e terminei Dom Casmurro. Minha obsessão com o gênio que é Machado de Assis continua”, disse a escritora norte-americana, que mora na Califórnia com o marido e os filhos.
A postagem com “Did Capitu cheat?” (Capitu traiu?) teve, até hoje (17/06), 327 mil curtidas; é a versão viral de um dilema machadiano, a questão que atormenta o protagonista Bentinho, a pergunta que já foi analisada por críticos, professores, pesquisadores e suscita discussões e interpretações ao longo desses quase dois séculos. Tudo é pretexto, estamos em junho do nascimento de Machado, sou carioca e vou reler Memórias Póstumas e Dom Casmurro até o fim do mês.
Texto publicado originalmente no #Colabora – Jornalismo Sustentável