Eu nunca fui de sonhar muito. E quando acontecia, ao acordar eu não me lembrava dos detalhes. Às vezes, após algum sonho, eu recordava o cenário ou as pessoas, mas tudo muito difuso, esparso, sem continuidade. Muito tempo e poucos sonhos dormindo. Os sonhos acordados me bastavam. Sempre foi assim. E nesse sempre já se foram 80 anos. Sim, amigos, eu completei 80 anos. Agora, após tantos anos de uma vida feliz, percebi que uma coisa mudou: comecei a sonhar muito durante o sono.
Tenho sonhado quase diariamente. Sempre com parentes, amigos e conhecidos, mortos. Nenhum vivo. Nenhum. Estranhamente, tenho sonhado frequentemente com pessoas que, em vida, tive poucos contatos, e elas se apresentam cheias de intimidades que nunca tivemos. Será que a morte ameniza o acanhamento e a timidez? Estou achando que sim.
Com os mais próximos, amigos, mãe, irmãos, e outros parentes, nos sonhos me permitem tocar, abraçar, acarinhar e beijar. Nunca sonhei com meu pai que não conheci: infelizmente morreu antes do meu nascimento. Com meu padrasto tem sido frequente.
Por que esses sonhos agora? Será que a aproximação da morte pela velhice está fazendo meu subconsciente se voltar para os mortos em busca de uma boa recepção do outro lado? Se for por esse motivo – apesar de involuntário – julgo muito condenável essa ação de lobista espiritual, buscando facilidades aduaneiras para adentrar numa outra vida em que ainda não acredito. Se for isso, é condenável, mas perdoável. São sonhos. E sonhar nunca foi proibido ou censurado. Não temos controle sobre eles.
Falando em morte, registro que tenho perdido muitos conhecidos, uns mais chegados, outros menos, obviamente que a maioria em consequência da nossa faixa etária. É normal. A morte é normal e tão previsível que já nascemos sabendo que ela ocorrerá, por mais que a ciência evolua e consiga postergá-la.
Apesar da normalidade, algumas dessas mortes me trazem tristeza e me fazem chorar. O choro alivia o sentimento da perda definitiva. Choro escondido para que ninguém confunda aquela tristeza com alguma depressão provocada pela velhice. Choro debaixo d’água. Sempre que algum fato, alegre ou triste, me sensibiliza ao ponto de provocar lágrimas, eu corro pro chuveiro. E ali, isolado de tudo e todos, dou vazão às minhas melancolias e emoções. Já há alguns anos desenvolvi essa prática de chorar debaixo da ducha. Recomendo o processo. Reconforta. E com água morna o efeito é bem mais rápido.
Sempre choro Alfeu , mas vou tentar debaixo do chuveiro.
Lindo seu conto sobre sonhos.
Excelente texto, prezado Alfeu. Pleno de lirismo sem deixar de lado a fina ironia que caracteriza muitos dos seus escritos.