Poucos bares no Rio resumem tão bem a extraordinária simbiose existente entre a boa comida das ruas e a alta gastronomia quanto o “novo” Velho Adonis. Para começar, esse sexagenário bar de subúrbio que há não muito tempo estava à beira do despejo agora mantém na sua cozinha um ex-chef do Satyricon. E no salão salpicado por mesas que um dia pertenceram ao Antiquarius, tem um sujeito que já foi maitre não só do estrelado português do Leblon como também chefiou o salão do Fasano Al Mare, um dos restaurantes mais caros da América do Sul. Sujeito esse aliás cuja vida daria um filme: já foi pobre, já foi rico, já foi gordo, emagreceu, quase foi padre, já perdeu muito no jogo, recuperou abrindo um botequim na favela… E acertou no milhar ao apostar tudo na recuperação dessa jóia da comida lusitana popular em Benfica. E hoje finalmente desfruta da fortuna com que sempre sonhou: ter um bar respeitado e lucrativo, onde pode cozinhar, bem servir e, claro, bem comer e beber com os amigos e clientes.
Essa semana faz cinco anos que João Paulo Campos e seu irmão Pedro assumiram um combalido Adonis para transfrormá-lo, de novo e de um outro jeito, em símbolo da gastronomia popular carioca. Quem toca o barco, contudo, é mesmo o João, já que o Pedro é dono de outro restaurante nas imediações. Mas para chegar até esse momento de tranquilidade, o atual sócio do velho Adonis conviveu com uma montanha russa de acontecimentos inusitados – para o bem e para o mal.
Caçula de 9 irmãos, ele foi o sétimo e último da família a deixar a pequena Reriutaba, no interior do Ceará, para tentar a sorte num restaurante carioca. Foi o último não só porque era o mais novo, mas também porque tinha sido o escolhido na prole para virar padre. Nessa época, assistia a cinco dias missas por semana, e prestou vestibular para Teologia. Mas uma viagem de férias ao Rio pôs tudo a perder, e aos 18 anos João Paulo desembarcava na cidade para trabalhar no administrativo do La Torreta, espanhol que fez sucesso no Jardim Botânico no final dos anos 90. Poucos meses depois, já estava no salão, recebendo os clientes com a simpatia que lhe é peculiar.
Daí, começou a galgar o que se pode chamar de carreira meteórica no universo dos maitres. Do La Torreta, passou passou para o Da Silva. Quatro anos depois, para o Antiquarius e, mais para a frente, ocupou o cobiçado cargo de maitre da área de recepção do Fasano Al Mare, no lobby do Hotel Fasano, distribuindo sorrisos, aperitivos e tira-gostos para os podres de ricos ávidos pelos lugares mais nobres no salão mais caro da cidade.
Já nessa época, o trabalho nos salões revezava com a diversão na cozinha de casa, no bairro do Jacaré, onde ele aplicava para a família e os amigos as receitas aprendidas com os mestres da alta gastronomia. Mas a convivência com o grupo Fasano logo rendeu um convite inesperado: ser gerente operacional de três restaurantes de luxo na Baía de Luanda, capital de Angola, num empreendimento empresarial na época apadrinhado pela família do presidente do país. E ganhando em dólar, imagina?…
Mas, por conta de outras questões paralelas, quebraram-lhe o bandolim. Não demorou muito e João voltou ao Brasil. Cheio de dinheiro no bolso, um balde de orgulho no peito, mas nenhum trabalho à vista. Restaram-lhe os botequins do Jacaré. Nos caça-níqueis mais vagabundos, deixou milhares de reais, numa rotina perigosa que rendeu ainda um ganho estupendo de peso, quando os 80 e poucos quilos de sempre viraram quase 140. Sem rumo, João quase sucumbiu.
Mas os botequins que por pouco não o derrubaram acabaram por salvar-lhe a vida também. Foi um ideia simples – abrir uma birosca do lado de casa, para vender galeto e garantir algum no final do mês – que rendeu a um velho amigo o primeiro sucesso no mundo dos memes gastronômicos populares: em 2011 nascia o Campos Beer, depois rebatizado de Casa do Galeto, que trouxe de volta restaurante ultra popular faz até hoje um sucesso danado no bairro do Jacaré e imediações.
Foi com nenhuma essa grana, majs o dali que João recuperou a auto-estima. Fez uma cirurgia bariátrica, e ainda abriu uma outra casa bem sucedida na área : o Dom Pedro, restaurante português em sociedade com o irmão. Aí, em 2019 – sob o efeito de umas cachaças a mais – ousou propôr ao seu Antero, o lendário dono do Adonis, a compra do bar que àquela altura já andava muito mal das pernas, fugindo dos oficiais de justiça para evitar as ações de despejo.
O que veio a partir daí já é história, contada e recontada em verso e prosa nas colunas de jornais e perfis de redes sociais sobre botequins que grassam por aí nos reinos digitais. E que exaltam, com unânime, louvor, e história desse bar que é a cara da Zona Norte do Rio de Janeiro, mas que deve a sua sobrevivência a esse cearense ousado, um imigrante que um dia viajou das altas rodas a gastronomia popular. Sem passagem de volta.