Este #RioéRua devia ser devoto de São Sebastião, padroeiro desta cidade por deferência do fundador, Estácio de Sá, não ao santo, mas ao rei de Portugal naquele longínquo ano de 1565. Mas o colunista é pessoa de pouca fé – apesar de ter nascido em família católica e conhecido de perto denominações cristãs. E morou na Bahia quando, depois de levar bronca por usar preto numa sexta-feira, passou a priorizar o branco neste dia dedicado a Oxalá.
Respeito, portanto, todas as crenças; talvez por isso posso ver algum sinal divino do dia da coluna coincidir com o Dia de São Jorge, santo mais popular entre os cariocas de todas as crenças e, acredito, até entre aqueles de pouca fé. Nesta terça, como em todo 23 de abril, uma multidão – vestida, na maioria, de vermelho, lota as missas e acompanha a procissão pelas ruas de Quintino, subúrbio do Rio onde está a Igreja Matriz de São Jorge.
A atual igreja foi construída no local onde havia uma pequena capela dedicada ao santo até meados do século passado. Em 1955, começou a construção da nova igreja, que foi sendo ampliada ao longo dos anos – ganhando fachada de pedras decorativas, torre e um anexo – conforme crescia a popularidade de São Jorge: a partir de 2002, as festas e a procissão de 23 de abril passaram a ser parte do calendário da paróquia. A celebração em Quintino reúne fieis católicos e também devotos de Ogum, orixá do candomblé e da umbanda, orixá da guerra e dos metais, que, no sincretismo criado pelos africanos escravizados, foi associado a Jorge da Capadócia, militar do exército romano, morto a mando do imperador Diocleciano (em 23/03/303), por não renegar sua fé cristã.
Há pelo menos 15 capelas dedicadas a São Jorge no Rio de Janeiro, mas o palco de outra grande festa para o santo no dia 23 é no Centro do Rio, numa igreja que Jorge divide com São Gonçalo Garcia. Esse templo, fundado em 1758 no Campo de Santana, era dedicado somente a São Gonçalo, mas, no começo do século seguinte, abrigou a irmandade de São Jorge, já que sua igreja, na vizinha Praça Tiradentes (ainda chamada Rossio ou Campo dos Ciganos), estava em ruínas e passaria por reformas. A reforma nunca foi concluída, a antiga Igreja de São Jorge acabou demolida em 1855 e as duas irmandades fizeram uma fusão, criando a Venerável Confraria dos Gloriosos Mártires São Gonçalo Garcia e São Jorge.
No Centro como em Quintino, a celebração começa na igreja e desagua na rua. E abraça fieis de todas as crenças – à frente, naturalmente, os filhos de Ogum – na umbanda, “Salve Jorge” é uma saudação usada para dar boas vindas ao orixá. É dia de feijoada, oferenda tradicionalmente servida a Ogum, numa tradição incorporada pelos devotos católicos de Jorge, e de alguma bebida porque, como me ensinou um camarada evangélico, o primeiro milagre de Jesus foi transformar água em vinho. E o Dia de São Jorge também é dia de samba: creio que há uma maioria de sambistas devotos do santo guerreiro (ou de Ogum, vai saber).
Em 2022, Jorge Ben Jorge apareceu na missa do dia 23 na igreja no Centro para cantar sua Jorge da Capadócia, música que pega emprestado trechos da oração ao santo. “Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge / Para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem / Para que meus inimigos tenham mãos e não me peguem / Para que meus inimigos tenham olhos e não me vejam / E nem mesmo um pensamento eles possam ter para me fazerem mal”. E não há roda de samba que não leve Ogum, sucesso de sincretismo de Zeca Pagodinho (autoria de Marquinho PQD e Claudemir). “Eu sou descendente Zulú / Sou um soldado de Ogum / Devoto dessa imensa legião de Jorge / Eu sincretizado na fé / Sou carregado de axé /E protegido por um cavaleiro nobre…”
Dia de festa, dia de fé, dia de rua, dia de comunhão, fraternidade, tolerância. O Dia de São Jorge também é dia de encontros. Foi numa celebração de 23 de abril que uma amada amiga encontrou seu parceiro de vida. Foi encontro com desencontros mas o amor prevaleceu com as bênçãos do Santo Guerreiro e os caminhos abertos por Ogum.
Nada é por acaso, dirão os mais crentes, e este Dia de São Jorge de 2024 chega numa terça-feira, dia tradicionalmente de culto a Ogum. A prece ao orixá, como ao santo, inclui sempre pedidos de proteção contra os inimigos de todos os tipos. Então, este #RioéRua, com a licença dos fieis de todas as crenças, aproveita para pedir a São Jorge e a Ogum uma proteção especial para os seus devotos. E, se sobrar tempo, para todos os cariocas de boa fé e boa vontade.
Publicado originalmente no #Colabora – Jornalismo Sustentável