O distinto leitor se lembra do Obelix? Quem leu os livros ou viu os filmes de “Asterix, o gaulês” sabe que o maior parceiro do mais famoso personagem dos quadrinhos franceses do século 20 caiu ainda bebê num caldeirão de poção mágica. A bebida que deixava a comunidade gaulesa indestrutível aos ataques dos soldados romanos da antiguidade era uma mensagem de resistência ao autoritarismo no século 20. Mas nas histórias, sempre que todo mundo bebia, o pobre Obelix ficava de fora… Pois os efeitos da poção já estavam permanentemente presentes no seu corpo.
Na coluna de hoje não tem nenhum bebê francês caindo em caldeirão encantado. Em compensação, tem um mezzo ucraniano, mezzo paranaense que, quando criança, levava na lancheira para a escola pequenas garrafas de cerveja caseira, preparadas pela família para reforçar a merenda. Talvez graças a isso, hoje ele não seja nenhum guerreiro invencível com calcanhar de Aquiles, e sim um mestre apaixonado pela bebida mais amada do Brasil. E que há dois anos oferece ao público carioca suas próprias poções mágicas, produzidas por ele mesmo no seu bar e cervejaria Paraphernalia, localizado num belo sobrado do século 19 da Rua dos Inválidos. Um pedaço do centro antigo do Rio que guarda valiosos tesouros da memória da cidade e do país, mas que também tem tudo para testemunhar um novo ciclo de desenvolvimento social, cultural e econômico na região.
Este nosso Obelix cervejeiro atende pelo nome de Rubens Komniski. Nascido há 54 anos numa família de imigrantes em Prudentópolis, na região mais ucraniana do Brasil. A cerveja das lembranças de infância na lancheira era na verdade uma beberragem feita de milho, ligeiramente fermentada e gaseificada, muito doce e com um leve toque de lúpulo, que as crianças dali adoravam beber. E que os pais permitiam, a despeito do pequeno porém presente teor alcoólico.
Essa memória tão química quanto feliz e ancestral acompanhou Rubens por toda a sua vida. Até mesmo quando ele levava uma rotina vetusta de advogado de aviação civil. Mas quando começou a chegar a meia-idade – e junto com ela a vontade de levar algo diferente dessa existência insignificante que vivemos aqui na Terra – voltou com força a lembrança do sabor doce do milho efervescente. E nos idos de 2008, Rubens resolveu fazer cerveja. Agora, de gente grande.
A princípio como cervejeiro caseiro, estudando e atendendo a todos os cursos que encontrava por aí. Depois – já nos tempos do boom da cerveja artesanal, na segunda década deste século – como dono de respeitados rótulos de cervejas ciganas, que chegaram a ser vendidas e reverenciadas nas melhores casas do ramo no Rio e em São Paulo.
O negócio cresceu tanto que Rubens traçou um plano ousado: construir sua própria fábrica de cerveja nos EUA, onde o incentivo fiscal e a desburocratização facilitam muito a vida de quem quer investir na área.
Ele só não foi às vias de fato por conta de algo quase tão fascinante, surpreendente, encantador, saboroso e estimulante quanto uma cerveja perfeitamente equilibrada: o amor.
Em 2019, Rubens já estava de passagem comprada para os EUA quando conheceu a publicitária Renata Iannarelli, numa noite furtiva qualquer do extinto bar Osório, em Ipanema. A paixão à primeira vista, reforçada pelo apreço mútuo pela cerveja, foi o estopim da mudança de planos. Em vez de abrir uma fábrica em Washington D.C, como planejado, Rubens resolveu ficar por aqui mesmo. Primeiro, em Ipanema. Mas acabou que os ventos do destino impuseram novo ajuste de velas e o casal – agora já devidamente casado, em 2021 – abriu no ano seguinte o bar e cervejaria de seus sonhos na Rua dos Inválidos. No coração do velho centro da cidade, que urge voltar a brilhar.
A poucos metros da vila onde Silvio Santos nasceu (hoje o prédio da Petrobras), o Paraphernalia funciona de segunda a sexta focado na happy hour concorrida entre as 16h e as 19h. A cada dia atraindo mais a turma que aos poucos volta a trabalhar presencialmente na região e também os novos moradores, que começam a salpicar nos novos empreendimentos imobiliários em curso por ali. A casa, que possui seis tanques de fermentação e capacidade de produção de 5 mil litros, oferece cinco rótulos próprios (APA, IPA, Wittbier, Red Ale e New England, sempre disponíveis nas torneiras) e também funciona como espaço industrial disponível para a produção de ciganas. Entre elas, atualmente, as cervejas dos premiados bares Baixela e Rio Tap Beer House.
E mais do que apenas beber e comer, uma visita ao Paraphernalia pode ser também uma experiência cervejeira mais profunda, tanto para os apreciadores quanto os curiosos. Afinal, os tanques de fermentação e armazenamento – toda a “parafernália”, enfim – estão expostos e operando a poucos metros das mesas. Se for o seu caso, basta acionar o Rubens que ele dá uma aula sobre tudo, com prazer. E no cardápio, bem ao gosto de quem ama lúpulo e afins, sanduíches, pastéis e comidinhas pensadas para harmonizar com cerveja estão à disposição. Mas uma criação da chef Gláucia Assumpção chama muito a atenção: os quibes da casa, que trocam a farinha tradicional pelos maltes usados na fabricação das cervejas. Deliciosamente imperdíveis, com sour cream artesanal feito lá mesmo.