Agora, ele estava deitado naquela cama branca, macia, olhando para o teto também branco e cercado de pessoas que, vestidas como marcianos, não se falavam. Mesmo assim, agiam com a precisão da engrenagem de um relógio suíço, enquanto ele sentia a consciência lhe abandonando. Máscaras e viseiras. Luvas. Mangueiras, seringas, cheiro de álcool. Muito álcool. Ainda teve lucidez para pensar: “se acenderem um fósforo aqui este prédio explodirá”. Prédio? Era um prédio? Talvez. Quem sabe era uma casa, uma tenda. Talvez um hospital de campanha?
Procurando uma posição mais confortável, tentou se mexer e percebeu que estava imóvel. Enrolado com lençóis, era como uma múmia presa à cama. Sentiu os braços, também imobilizados, com as veias ligadas por tubos a sacos plásticos pendurados na cabeceira, que pode ver ao levantar o olhar. Um saco tinha líquido translucido e o outro líquido vermelho. Certamente soro e sangue. A situação não era propícia, mas lembrou-se de Ronaldo Bôscoli, em situação semelhante, oferecendo aos amigos que o visitavam: “Tinto ou branco?”. Que coisa absurda, ele ali, fodido, grogue de medicações, amarrado e pensando na frase de Bôscoli, que, talvez, nunca tenha sido dita. Pode ter sido uma brincadeira de Vinicius, não pode? Quem saberá? Talvez…
Frequentemente aqueles marcianos se lembravam dele e apontavam um revólver para sua testa e apertavam seu dedo indicador com um prendedor de roupa. Ele, suficientemente bem-informado, sabia que eram termômetros e oxímetros.
Há uma semana, talvez mais, talvez menos, ele acordou com uma leve dor de cabeça. Resultado do vinho vagabundo que bebera na véspera? Talvez. Há tempos ele vinha, diariamente, bebendo uma garrafa de vinho entre o jantar e o dormir. O seu clínico insistiu para que ele diminuísse a bebida:
“Você consegue?”
“Talvez“, respondeu.
Conseguiu. Passou a beber uma garrafa em três dias, ou melhor, em três noites. O volume de líquido diário foi reduzido. Mas, certamente a qualidade da bebida também diminuiu. O último terço de cada garrafa era quase vinagre. Vinho é caro e não dá para desperdiçar. E tome vinagre pra dentro. E haja dor de cabeça!
Ele já estava tão acostumado com os efeitos deletérios daqueles finais de garrafas que pode perceber, quase imperceptível, uma variação naquela cefaleia matinal. Estava diferente. E continuou diferente. Dor permanente, nem aumentava, nem diminuía. O dia inteiro. A febre chegou no outro dia. Fraca, mas constante. Leve coriza. Gripe? Talvez. Medicou-se com um daqueles antigripais que todos temos em casa. Não adiantou. Moleza, preguiça, desânimo.
Gripe? Quem sabe a vacina de gripe estava estragada? Talvez. E se estava estragada foi castigo. Sempre tomou a vacina no posto de saúde, para duas cepas do vírus influenza. Este ano inventou de tomar em clínica particular porque, diziam, era para quatro cepas. Autoengano. Na verdade, ele fugiu daquela fila de velhos resmungões que só faziam reclamar da vida e, principalmente, do presidente da República. Pura soberba. Bem-feito, quem mandou esnobar os velhinhos do posto?
Ardendo em febre, quase sem respirar, sem paladar ou odor, deu entrada na UPA — Unidade de Pronto Atendimento. Desnecessariamente, eis que os sintomas já denunciavam a doença, coletaram material para comprovar o óbvio. Estava contaminado. O vírus da Covid-19 chegou. E gostou dele. Alojou-se nele.
Ficou puto! Logo ele que desde o primeiro momento da pandemia aderiu ao isolamento. Isolamento total. Vertical, horizontal ou até esconso, do jeito que inventassem, cumpriu a prisão voluntária. Máscaras, luvas, sabão, álcool 70, detergentes e álcool em gel passaram a ser a sua rotina. O carro na garagem do prédio devia estar mais empoeirado do que trabalhador de pedreiras. Seis meses sem entrar no elevador. Muito puto! Aquele sacrifício danado não serviu para nada? O danado do vírus da covid-19 foi mais esperto do que ele. Sabia da inutilidade da sua raiva, mas a maior revolta era por ter a perfeita noção de que nunca saberia onde foi que errou e baixou a guarda.
Quantas coisas ele deixou de fazer, de comer, de ver ou rever, fugindo daquele vírus imbecil, que nem um ser vivo é. Um vírus idiota que não consegue nem se definir se é animal ou vegetal. Ou se faz parte de um novo reino. Idiota? Concluiu que o idiota foi ele, que não conseguiu se proteger eficientemente daquela proteína mal desenvolvida.
Da UPA para UTI foi um passo, mas um passo que pode ter durado horas. Ou dias? Talvez semanas. Não sabe, não lembra. Não distingue mais o tempo. Agora, deitado naquela cama branca, macia, olhando para o teto também branco e cercado de pessoas vestidas como extraterrestres entendeu que ia ser entubado.
Será que algum dia ele sairia andando desse lugar? Talvez. Mas, se saísse, jurou para si mesmo, trocaria todos esses talvez por uma certeza única: voltaria a se vacinar no posto só para entrar na fila e, com redobrado vigor, recrudescer e apoiar as opiniões dos velhinhos.