Peixe com banana? Foi-se o tempo em que Paraty só tinha isso para oferecer – e disso já sabemos eu, você e a torcida do Sociedade Esportiva Paratiense. Há muito que a gastronomia caiçara recebe com braços abertos a influência de cozinhas do mundo inteiro. Mas coube a duas paratienses por escolha, que guardam uma história heterodoxa de identificação com a cidade, criarem em sua lojinha no centro histórico um pequeno templo que difunde, na forma de compotas, geleias e embutidos de fina charcutaria, pedacinhos perfumados do passado e visões criativas do futuro da gastronomia da cidade.
Não é um botequim clássico, devo dizer. Mas o espírito de festa e boemia impera na rotina da Casa das Meninas, pequeno bistrô recém-inaugurado na Rua Com. José Luiz, a antiga Rua dos Escravos, bem no coração do Centro Histórico. Afinal, não são meninas quaisquer. Vinte anos atrás, quando chegaram arrasadoras à cidade, Maria Claudia Franca e Anna Paula Barreto comandaram o bar mais iconoclasta de Paraty, palco de noitadas arrasadoras e conversas revolucionárias que ajudaram a construir uma cultura de liberdade na conversavadora cidade do Sul Fluminense. Foi a partir das mesas do extinto Dama da Noite, ainda no começo deste século, que o filho de pescadores nascido na Praia do Sono José Cláudio de Araújo pavimentou o sonho de tornar-se o primeiro prefeito assumidamente gay do Brasil. José Cláudio faleceu em 2021, e deixou como legado nada além do que a viabilização da FLIP, o festival literário que hoje é sinônimo de Paraty.
Pois é com toda essa estrada que Claudia e Anna construíram, na sua Casa das Meninas, a extensão da arte que labutam há anos no sítio em que vivem na estrada Paraty-Cunha, na encosta da Serra da Bocaina: charcutaria de terra e de mar, feita com tudo o que há de melhor nas criações, plantações, praias e costões marinhos paratienses. Por isso entenda-se, além de salames e linguiças magníficos feitos com a produção agrícola local, embutidos feitos com carne curada e defumada de peixes e crustáceos da região.
E esse é o grande barato do lugar. Pois imagine, caro leitor, servir-se de uma bandeja de atum curado nas técnicas mais sofisticadas de fermentação, servido numa autêntica jamoneira espanhola, acompanhado de geleia de limão plantado na horta das meninas e misturado com cachaça Paratyana, uma das melhores da região?
Ou viajar na história do Brasil enquanto saboreia uma “linguiça real de tropeiro”, que embute porco, feijão, milho, pimenta e cachaça para representar a comida dos antigos exploradores da pioneira Estrada Real, que liga Paraty a Ouro Preto desde o século XVI?
Ou ainda saborear um salame “La cacciatora”, em homenagem às pouquíssimas mulheres que fazem charcutaria no Brasil, untado de manteiga de siri catado lá mesmo na Baía da Ilha Grande?
Muito além do peixe com o banana, a mistura da cultura caiçara com a paixão pela charcutaria e pelos produtos regionais artesanais faz da Casa das Meninas uma pequena embaixada das lembranças gastronômicas mais pitorescas do lugar. Tudo ali tem um pé no passado, impulsonando o nosso paladar rumo ao futuro, num trabalho louvável de preservação da memória ancestral de uma das cidades com mais história para contar que esse país possui.
Não acredita? Então depois de comer o seu jamon de atum com tapenade de coração de bananeira, ou seu chutney de banana da terra servido sobre discos palmito-juçara de manejo, peça de sobremesa para você e sua família uma porção ou duas de “manuê de bacia”. O ancestral bolo de melado – que nos tempos em que Paraty era uma cidade esquecida ao sabor das marés podia ser encontrado em qualquer esquina das suas ruas de pé-de-moleque – hoje é uma iguaria esquecida. Mas que a Casa das Meninas está ajudando a recuperar, a partir de uma recriação do bolo feita pela pernambucana e doceira de mão cheia Ana Paula Benko, dona da loja Quitutes da Ana (@quitutes.paraty) e parceira das meninas na cidade.
E eu vou te dizer uma coisa: manuê de bacia é uma das coisas mais deliciosas que você já terá comido na sua vida. Depois do jamon de atum, é claro.