Enquanto ainda não se define se o Sambódromo da Marquês de Sapucaí ficará sob a gestão da Prefeitura do Rio ou do governo do estado, as escolas do Grupo Especial já preparam seus enredos de 2026 para desfilar no maior palco do carnaval brasileiro. Com novas narrativas, homenagens marcantes e um foco artístico bem definido, especialistas já apontam o tom da festa mais aguardada do ano.
O carnaval de 2026, que continuará sendo dividido em três noites pelo 2º ano consecutivo, ocorrerá entre os dias 15 e 17 de fevereiro. No entanto, diferentemente deste ano, em que os enredos se concentraram principalmente em temas ligados às religiões afro-brasileiras, os desfiles do próximo ano ainda carregam essa raiz, mas com uma aposta diferente: as homenagens.
Destaque para homenagens no carnaval 2026
Dos enredos já divulgados pelas 12 escolas, nove serão dedicados a personalidades da cultura e de outros setores do Brasil. Entre os destaques, estão Rita Lee (Mocidade Independente), presidente Lula (Acadêmicos de Niterói), Ney Matogrosso (Imperatriz Leopoldinense), Carolina Maria de Jesus (Unidos da Tijuca) e Rosa Magalhães (Acadêmicos do Salgueiro).
De acordo com Rodrigo Pereira da Silva Rosa, pesquisador e coordenador do Observatório de Carnaval (Obcar), ligado ao Museu Nacional/UFRJ, a nova aposta das escolas só reforça que o carnaval é cíclico e plural, mas não perde de vista sua essência, ancorada nos ensinamentos de grandes nomes do samba, como Tia Ciata, Paulo da Portela e Cartola.
“O carnaval permite que determinados temas e linguagens sejam apresentados ao público. Para 2026, percebemos uma presença maior de enredos de homenagem. Isso acontece por conta dessa pluralidade temática e artística que o carnaval proporciona, permitindo que cada escola e cada carnavalesco definam sua própria linha narrativa”, explica o especialista.
Coincidência?
Se alguns veem esse foco em homenagens como uma coincidência, Rodrigo tem outra visão. Para ele, trata-se de uma oportunidade de o carnaval olhar para sua própria história, exaltando carnavalescos e figuras importantes da cultura brasileira. Ele ressalta que reduzir essa tendência apenas à ideia de “homenagens” seria minimizar a grandiosidade dos personagens e obras celebrados.
“Olhar para a literatura brasileira na sua essência, quando se homenageiam escritoras e escritores negros, é continuar exaltando africanidade e negritude. E, quando falamos de artistas como Ney Matogrosso, mesmo não sendo negro, ele representa transgressão em uma época em que censura e preconceito reinavam. Ele desafiava completamente a norma”, avalia Rodrigo.
Expectativas para o próximo carnaval
Sobre o que esperar do próximo carnaval, o pesquisador demonstra entusiasmo:
“A expectativa é total. As homenagens são importantes porque celebram pessoas, obras literárias e artistas que merecem estar na Sapucaí. O que podemos esperar dessas escolhas é curiosidade e impacto visual. Vai ser uma explosão de cores, fantasias e carros alegóricos materializando essas narrativas. E, no discurso, podemos esperar muita potência e representatividade”, afirma.
Caminhos narrativos diferentes
Por sua vez, Luiz Felipe Ferreira, professor do Instituto de Artes da Uerj e criador do Centro de Referência do Carnaval (CRC)/Uerj, complementa a análise sobre os enredos de 2026. Ele lembra que, historicamente, os temas dos desfiles sofrem influência do contexto político, social e cultural, e que, em determinados anos, as escolas tendem a se concentrar em uma mesma linha narrativa.
O pesquisador relembra alguns períodos marcantes do carnaval: os enredos ufanistas dos anos 1940, os históricos das décadas de 1950 e 1960, os críticos da década de 1980 e os patrocinados nos anos 1990. Ele também ressalta que 2025 teve como grande marca os enredos afro-brasileiros, fenômeno que já havia ocorrido em 1988, no centenário da Abolição da Escravidão.
“Talvez, em reação a isso, os carnavalescos tenham optado por outros caminhos narrativos em 2026, apostando nas biografias para trazer diversidade temática. Vale notar que os personagens biografados não são os clássicos heróis da história, mas pessoas que representam a diversidade do povo brasileiro, com elementos ligados à africanidade, ao mundo LGBTQIA+, à cultura popular e até ao universo pop”, analisa o professor.
Falas polêmicas de Paulo Barros
Os temas afro-brasileiros de 2025, embora tenham feito sucesso na passarela, estiveram no centro de muitas polêmicas, envolvendo o universo do carnaval nas redes sociais. O cenário ganhou destaque principalmente após a fala do carnavalesco Paulo Barros, então na Unidos de Vila Isabel, que afirmou não gostar desse tipo de enredo, dizendo que eram todos iguais e que ninguém entendia nada.
No próximo ano, além das figuras negras ligadas às religiões de matrizes africanas, o tema continuará em evidência em três enredos do Grupo Especial. Entre eles, o da Grande Rio, que vai homenagear a cultura do mangue; o do Paraíso do Tuiuti, que levará à Sapucaí a espiritualidade afro-cubana com o tema Lonã Ifá Lukumi; e a atual campeã, Beija-Flor, que celebrará o ritual do Bembé do Mercado.
Racismo e intolerância religiosa
Para Rodrigo Pereira da Silva Rosa esses ataques às religiões afro no carnaval são reflexo do racismo e da intolerância religiosa presentes no Brasil, que, em sua visão, explicam a resistência ao tema neste ano.
“A intolerância religiosa ainda é latente, infelizmente. E o carnaval, por ser um produto televisionado, midiático, cultural e também um grande evento turístico, acaba virando alvo da ala conservadora da sociedade, que é racista e intolerante religiosamente. Essa ala aproveita o momento para atacar o que já combate durante o ano inteiro”, afirma o pesquisador.
Rodrigo enfatiza a importância de ressaltar que o carnaval só continua por conta de suas raízes afro-brasileiras. Ele destaca que é fundamental contar histórias como a de Iansã, Milton Nascimento, Oxalá e tantas outras que fazem parte do cotidiano e da vida da negritude e do próprio carnaval.
‘Repetição da temática’
Já Luiz Felipe Ferreira afirma não se recordar de ataques diretos às religiões de matrizes africanas no carnaval, mas entende que as críticas foram mais direcionadas à repetição da temática.
“Sem considerar que o tema da religiosidade afro-brasileira pode dar margem a uma infinidade de interpretações, que, a meu ver, foram traduzidas de formas diversas pelas escolas. Quanto à ‘perda de espaço’, ela é relativa, já que a perspectiva afro-brasileira está presente em vários enredos de homenagem em 2026”, finaliza o professor.
Enredos e ordem dos desfiles do carnaval 2026
Confira abaixo o panorama completo de todos os enredos, além da divisão dos dias e da ordem dos desfiles do carnaval de 2026.
Domingo — 15 de fevereiro (1º dia)
- Acadêmicos de Niterói – “Do alto do Mulungu surge a esperança: Lula, o operário do Brasil” — A escola estreia na elite com a trajetória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), do agreste nordestino à Presidência da República.
- Imperatriz Leopoldinense – “Camaleônico” — Tributo ao cantor Ney Matogrosso, celebrando sua transformação artística e ousadia performática.
- Portela – “O Mistério do Príncipe do Bará – A Oração do Negrinho e a Ressurreição de Sua Coroa sob o Céu Aberto do Rio Grande” — Uma viagem à ancestralidade do batuque gaúcho através da figura de Príncipe Custódio.
- Estação Primeira de Mangueira – “Mestre Sacacá do Encanto Tucuju – O Guardião da Amazônia Negra” — Homenagem ao curandeiro amazônico e seus saberes tradicionais.
Segunda-feira — 16 de fevereiro (2º dia)
- Mocidade Independente de Padre Miguel – “Rita Lee, a Padroeira da Liberdade” — Celebrando a artista que encarnou irreverência e liberdade na música brasileira.
- Beija‑Flor de Nilópolis – “Bembé” — Enredo sobre o Bembé do Mercado, célula viva de fé e cultura afro-brasileira desde 1889.
- Unidos do Viradouro – “Pra Cima, Ciça!” — Tributo ao mestre de bateria Ciça, símbolo da potência rítmica do samba carioca.
- Unidos da Tijuca – “Carolina Maria de Jesus” — Uma reverência à escritora que trouxe a favela ao mundo, força e indignação em livro.
Terça-feira — 17 de fevereiro (3º dia)
- Paraíso do Tuiuti – “Lonã Ifá Lukumi” — Enredo que resgata a espiritualidade afro-cubana e os ritos ancestrais do Ifá Lukumí.
- Unidos de Vila Isabel – “Macumbembê, Samborembá: Sonhei que um sambista sonhou a África” — Homenagem ao multiartista Heitor dos Prazeres e sua relação com a Pequena África carioca.
- Acadêmicos do Grande Rio – “A Nação do Mangue” — Um mergulho na cultura do mangue, ancestralidade afro-brasileira e resistência periférica.
- Acadêmicos do Salgueiro – “A delirante jornada carnavalesca da professora que não tinha medo de bruxa, de bacalhau e nem do pirata da perna-de-pau” — Uma fantasia em homenagem à carnavalesca Rosa Magalhães, mestra das reinvenções do carnaval.