Quando comecei, lá pelos 16 anos, a frequentar botequins por conta própria (antes ia na aba do meu pai), meu guia era o B.I.P (Busca Insaciável do Prazer), notas do Jaguar, grande cartunista e grande boêmio, no semanário Pasquim, em que dava dicas de onde beber e comer nesta cidade de São Sebastião – e em outras também. Era um guia, em pílulas, de bares novos e antigos – não eram todos pés-sujos, como podem alguns imaginar, porque Jaguar não tinha preconceitos: bebia até em restaurante estrelado.
Ao longo da vida, fui conjugando o verbo botecar e colecionando bares pelo Rio de Janeiro, mas, naturalmente, há muito mais botequins por aqui do que a minha modesta capacidade boêmia. Assim, festivais de baixa gastronomia me dão uma certa angústia porque abrem um leque assustador de ofertas, que nem o Jaguar daria conta. O Comida di Buteco 2024, por exemplo, tinha um cardápio de mais de 140 estabelecimentos – capital, Niterói e Baixada. A alma boêmia fica perdida entre tantas opções, temendo, inclusive, cair em alguma armadilha.
Foi uma alegria, portanto, tropeçar numa rede social qualquer pelo Botecar, a primeira versão carioca de um festival de botequins que, como o Comida di Buteco, nasceu em Belo Horizonte e também tem um concurso de petiscos. Mas essa nova promoção, com esse nome inspirador, reúne apenas 40 bares cariocas; e, dos 38 possíveis, eu já conheço 28: 73% (são 40 no festival, mas dois abriram só agora – o Botecar começou dia 21 de novembro).
A lista dos conhecidos aponta para uma competição gastronômica em alto nível já que conta com Aconchego Carioca, Adega do Pimenta, Bar da Frente, Bar da Gema, Bar da Portuguesa, Bar do Momo, Bar Madrid, Costelas, Enchendo Linguiça, Kalango e Velho Adonis – um time de 11 lugares onde, como conjugo o verbo botecar com frequência, sei que a cerveja estará sempre bem acompanhada. Garante também a qualidade da disputa a dupla de curadoras – as jornalistas Marcella Sobral e Pitty Basílio, coleguinhas de profissão e de balcão.
Aprendi com os executivos corporativos que o importante é estabelecer metas desafiadoras porém factíveis. Inicialmente, fixei como objetivo cobrir todos os bares que me faltavam na Zona Sul, onde nasci, moro e circulo mais: eram sete. Talvez fosse possível botecar com tranquilidade até o fechamento desta coluna.
Dois botequins fizeram muito bem a essa alma boêmia. O Baixela é um legítimo pé-sujo no Posto 6: tem tremoços, jiló, alho, ovo de codorna e batata calabresa. E uma imagem de São Jorge na parede. Jaguar vai gostar. Provei e aprovei o bolinho de peixe com maionese de dendê – batizado de Rainha do Mar em homenagem a Dorival Caymmi, todos os petiscos de Botecar tem nomes inspirados em músicas. Também a maxixada com calabresa (homenagem ao Moacyr Luz) do Quitanda, no Catete, alegrou o paladar.
Os bares recém-inaugurados da lista são, na verdade, novos empreendimentos de velhos conhecidos da botecagem carioca. Sergio e Eliane Rabello – do Sat’s – abriram o 5ª Categoria, bem ao lado da Adega da Velha (que eles compraram em 2019): a moela à parmegiana (Trocando em Miúdos) estava excelente. Raphael Vidal – da Casa Porto e do Bafo da Prainha – chegou ao Beco das Sardinhas com o Capiau. O prato Claudinho, com bochecha de porco na receita, tem difícil tarefa de distrair a freguesia das casas especializadas em sardinhas (muito boas) daquela região do Centro.
Botequei também no Maravilha, em Botafogo, onde não cheguei a provar o Vem cá, Minha Flor (nome de um bloco): não sou muito de couve-flor – nem empanada. Mas não alcancei a meta de cobrir os sete bares que me faltavam na Zona Sul. Uma das razões: impliquei com o Zuzu Fish Bar – não é nome de boteco que preze a tradição. (Aliás, parêntesis para informar que não votei nos petiscos: precisa usar um QR code, o que é coisa para novas gerações de botequeiros).
Faltou tempo para ir ao Otra, em Copacabana – pretendo pagar essa dívida. A pressa é sempre inimiga da botecagem. Porque faz parte da experiência dos botequins, conversar fiado ou ouvir a conversa fiada alheia, sempre sobre importantes temas da conjuntura ou sobre questões sempre atuais.
Assim, numa mesa, o debate era se a cabeça pensante na trama do golpe de estado para impedir a posse de Lula era o general Braga Neto ou o general Heleno – havia consenso que o capitão Bolsonaro não tinha capacidade intelectual, coragem e patente para isso. Em outro boteco, a discussão (antes da final da Libertadores) era sobre o melhor jogador do campeonato brasileiro: o argentino Almada ou o venezuelano Zavarino – o que diz muito sobre o nosso principal torneio.
Numa mesa inteiramente feminina, jovem pedia conselho às amigas sobre a melhor maneira de se livrar “delicadamente” de um rapaz que tornara-se “inconvenientemente” apaixonado após encontros que deveriam ser apenas de “inconsequente” diversão. Em outra mesa, de outro bar, uma ou duas gerações adiante, um grisalho bebedor de cerveja tentava convencer o amigo, recentemente devolvido à solteirice, das qualidades dos aplicativos de namoro. Conversas como essas fazem parte da experiência dos bares onde há sempre o consolo de que todos problemas são parecidos e as pessoas, mesmo diversas, também.
E, exatamente, por isso: pretendo seguir conjugando o verbo botecar – inclusive, ainda durante o Festival Botecar que vai até o dia 20 de dezembro. Planejo conhecer, pelo menos, o Bar do Trotta, na Tijuca, porque seu prato Naquela Mesa (samba que adoro) é composto de baguetes com pernil, queijo provolone e alichela. E talvez fazer uma incursão à Ilha do Governador onde não conjugo o verbo botecar desde o tempo – mais de 30 anos – em que o meu grande parceiro de botecagem morava por lá.
Texto publicado originalmente no #Colabora – Jornalismo Sustentável