O debate em torno do polêmico projeto de lei que prevê a regulamentação de plataformas de hospedagem por temporada, como o Airbnb, tem gerado controvérsia na Câmara Municipal do Rio. No entanto, o vereador Salvino Oliveira (PSD), autor da proposta, não foi o primeiro a sugerir essa ideia. Em 2019, um outro projeto muito similar foi apresentado e discutido, mas acabou sendo arquivado pela casa, por ser considerado inconstitucional.
O Projeto de Lei nº 935, de 2018, de autoria do então vereador Jones Moura (PSD), também queria regulamentar a exploração de imóveis residenciais como meio de hospedagem remunerada no município do Rio. A proposta exigia que a exploração desses imóveis fosse autorizada pelos proprietários e seguisse as regras de cada condomínio.
Pagamento de impostos
Além disso, a proposta estabelecia a obrigação de pagamento de impostos relacionados à hospedagem, como o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS). A fiscalização ficaria a cargo das autoridades municipais, que poderiam aplicar penalidades, como multas e o cancelamento da licença de funcionamento, em caso de descumprimento das regras. Jones Moura explicou o que motivou a criação de seu projeto na época.
“Lembro que essas plataformas estavam chegando e eram muito novas para nós, cidadãos. Havia uma preocupação, porque os cariocas usavam essas plataformas, mas tudo o que não tem regulamentação pode ser explorado. A própria plataforma poderia explorar os seus usuários. Tínhamos essas preocupações. Por isso, fizemos o projeto de regulamentação”, afirma ele.
Projeto foi considerado inconstitucional
No entanto, no Diário Oficial da Câmara Municipal do Rio, de 6 de maio de 2019, foi publicado o parecer da Comissão de Justiça e Redação, que considerava o projeto inconstitucional, argumentando que ele invadia a competência legislativa da União.
Na decisão, o relator, Thiago K. Ribeiro, afirmou que a regulamentação de questões relacionadas ao direito de propriedade é de competência exclusiva da União, conforme o artigo 22, inciso I, da Constituição Federal. Ele ressaltou que o projeto tratava de assuntos civis, como a locação de imóveis, e que esse tema deveria ser regulamentado em nível federal.
Além disso, apontou que a proposta considerava a locação de imóveis como geradora do ISS, o que, segundo ele, não era compatível com a legislação federal, especialmente com a Lei Complementar nº 116/03 e a Súmula Vinculante 31 do Supremo Tribunal Federal, que proíbe a incidência de ISS sobre operações de locação de bens imóveis.


Agora é constitucional?
Esse cenário chamou a atenção de Jones Moura, que se questiona sobre por que um assunto anteriormente considerado inconstitucional está sendo debatido novamente como constitucional.
“Isso naturalmente desperta a curiosidade da população e da imprensa. Por que um projeto praticamente idêntico foi rejeitado por ser inconstitucional em 2019 e agora está sendo debatido? São situações que acontecem no mundo da política e nos parlamentos que não conseguimos entender. Naquela época, não consegui nem iniciar o debate”, compartilha ele.
De acordo com Jones, o objetivo de sua proposta era regulamentar as plataformas para proteger os usuários e evitar sua exploração. Para isso, ele elaborou artigos que visavam a proteção dos cidadãos nesse contexto. Jones acredita que, com o tempo, esses artigos se tornaram mais maduros e alinhados com a realidade atual, além de observar que as próprias plataformas se adequaram a muitas dessas questões.
Projeto de Salvino
No novo texto do projeto apresentado por Salvino Oliveira, na Câmara, nesta quarta-feira (26), o parlamentar fez algumas alterações após debater a iniciativa com entidades que representam proprietários de imóveis e com vereadores críticos à medida. A proposta abrange a locação de imóveis, parcial ou integral, por períodos de até 90 dias, para hospedagem temporária, seja diretamente ou por meio de corretores, agentes, plataformas digitais e aplicativos.
Entre os principais pontos do projeto, destacam-se a criação de um Cadastro Municipal Simplificado de Agentes de Hospedagem, que exige documentos como a inscrição no Cadastro do Ministério do Turismo e na prefeitura, além da autorização da convenção do condomínio para a prática. Também se exige que os intermediadores da hospedagem, como as plataformas digitais, se estabeleçam no município e se responsabilizem pela retenção e repasse de tributos municipais.
Justificativa mais robusta
Além disso, o gabinete do parlamentar ampliou a justificativa do projeto. O texto menciona, por exemplo, que Petrópolis, na Região Serrana, conseguiu na justiça o direito de cobrar o Imposto Sobre Serviços (ISS) das plataformas. Também destaca que em cidades no exterior há regras ainda mais rígidas do que as propostas pelo projeto.
Em São Francisco (EUA), por exemplo, apenas proprietários residentes podem oferecer seus imóveis, sendo proibido o “listing”, ou seja, quando anfitriões agenciam dezenas ou até centenas de imóveis. Por fim, o texto ressalta que a proposta não visa criar impostos ou taxas para os proprietários, mas sim entender, por meio do cadastro, quais são as áreas de maior demanda.
Moradores debatem o projeto
A medida, além de ser criticada pelo setor hoteleiro e por representantes da Associação Brasileira de Locação por Temporada (ABLT), também não tem consenso entre os moradores. O presidente da Sociedade Amigos de Copacabana, o advogado Horácio Magalhães, destaca que, embora haja preocupação com as plataformas de hospedagem entre os moradores, especialmente síndicos de condomínios, o projeto em questão não está bem elaborado.
“Este projeto é muito ruim, repleto de inconstitucionalidades. Se continuar desse jeito, não vai passar. A preocupação dos síndicos é legítima, já tivemos reuniões. Estamos buscando um meio-termo, aconselhando os condomínios a regular suas próprias regras. O mercado está difícil para os proprietários, que enfrentam altos custos e não conseguem alugar suas propriedades de forma viável. A regulamentação precisa ser bem pensada, respeitando as nuances do setor imobiliário e a questão tributária, que deve ser tratada a nível federal, não como uma taxação de serviços”, afirma.
Horácio também destacou que, em uma reunião com a assessoria do vereador Salvino Oliveira sobre a proposta, a associação chegou a alertar sobre o projeto similar que foi arquivado em 2019 e considerado inconstitucional pela CCJ da Câmara do Rio.
Condomínios já criam suas próprias regras
O “meio-termo” proposto por ele já está sendo adotado em outros espaços da cidade, onde os próprios condomínios criam suas próprias regras. Um exemplo disso é a decisão da Justiça do Rio, que, em 2021, concedeu uma liminar obrigando um condomínio na Rua das Marrecas, no Centro, a fornecer uma cópia da chave do portão de entrada e a se abster de proibir o acesso de convidados de locatários aos imóveis.
A ação foi movida pela dona do apartamento, que alegou que os direitos sobre sua propriedade estavam sendo violados. De acordo com a decisão, entre os direitos do proprietário, está o de usufruir do bem, inclusive alugando-o a terceiros por temporada, não podendo esse direito ser limitado pela convenção nem pelo regimento interno do condomínio, sob pena de interferência indevida no direito exclusivo de propriedade.
A opinião de quem convive
O porteiro Mauro Linhares, de 48 anos, que trabalha em um prédio no Centro, defende que haja um controle maior. Ele, que trabalha em um edifício com grande circulação de pessoas, acredita que é necessário uma fiscalização mais rigorosa nos condomínios.
“Trabalho em um prédio com grande circulação de pessoas e, por isso, acredito que é necessário um controle mais rigoroso sobre quem entra e sai nessas hospedagens. A entrada e saída de turistas precisam ser monitoradas com mais atenção, tanto pela segurança do local quanto para garantir a tranquilidade dos moradores, que muitas vezes se sentem inseguros com a rotatividade constante de hóspedes”, afirma.
Preocupação antiga
Já a jornalista Dandara Franco, de 26 anos, moradora de Jacarepaguá, na Zona Oeste, e usuária assídua do Airbnb, adota uma postura mais cautelosa ao analisar a proposta. Ela reconhece que essa é uma preocupação antiga, mas ainda não tem uma opinião formada sobre o projeto.
“Acredito que pode trazer benefícios para o turismo e mais segurança para quem aluga. No entanto, não vejo coerência em permitir em algumas regiões e em outras não. Ou vale para todos, ou para ninguém. Como moradora, não acho que o impacto econômico e turístico justifique mudar algo que já funciona. Se um condomínio decide democraticamente que não quer o Airbnb, quem discorda pode se mudar para outro lugar. Mas se houver uma obrigatoriedade para todos, quem é contra vai fazer o quê? Vai se enfiar aonde?”, indaga ela.
Em nota ao TEMPO REAL, o presidente da Federação das Associações de Moradores do Município do Rio (Fam-Rio), Licínio M. Rogério, informou que o tema será debatido em uma reunião do conselho de representantes neste sábado (29), embora grande parte das associações de bairros ainda não tenha se posicionado sobre a proposta.
Impacto urbano da proposta
O arquiteto Gerônimo Emílio Almeida Leitão observa que essa regulamentação tem se tornado uma preocupação crescente em várias cidades ao redor do mundo, incluindo Lisboa, capital de Portugal. Ele destaca que, em outros países, isso ocorre devido ao aumento na oferta de moradias para turistas, em detrimento das necessidades da população local. Essa prática, segundo ele, intensifica a gentrificação e eleva os preços das áreas valorizadas por turistas, forçando os moradores a se deslocarem para regiões periféricas.
Já na cidade do Rio, onde o debate está se concentrando nos condomínios, o arquiteto acredita que, caso ocorra uma regulamentação, ela deve focar na segurança e no controle, estabelecendo um período mínimo de locação, como em contratos formais. No entanto, ele reconhece que essa é uma questão complexa, com interesses conflitantes entre a rede hoteleira, o mercado imobiliário, a rede de proprietários e os demais moradores.
“É uma questão complexa que esbarra na esfera privada, como o condomínio, ao definir limites e regras específicas, especialmente em relação à segurança e à responsabilidade pelos danos causados. Defendo a liberdade de acordos entre as partes, mas acredito que é crucial estabelecer um controle básico e garantir que as leis existentes sejam aplicadas de maneira eficaz, sem criar regulamentações complexas que depois não serão devidamente fiscalizadas”, finalizou.