Repleto de jovens, o ônibus corta a estrada como tantos outros a caminho do interior fluminense. Uma conversa solta sobre os planos para o réveillon, um rapaz trocando mensagens pelo celular, alguém lendo um livro. Mas, espalhadas pelos corredores, há pistas de que aquela não é uma viagem como as outras: cases de instrumentos ocupam boa parte dos lugares. O veículo leva os músicos da Orquestra Light da Rocinha pelo estado do Rio de Janeiro — e, com eles, um repertório que atravessa de Villa-Lobos a Raça Negra, de “Carmen” de George Bizet a “Asa branca” de Luiz Gonzaga, num trajeto que espelha a própria formação do grupo.
Criada em 2024 a partir da Escola de Música da Rocinha, instituição com mais de três décadas de formação musical comunitária, a Orquestra Light da Rocinha reúne dezenas de músicos, em sua maioria, egressos de projetos sociais. Expressa em som e acordes a mudança que a cultura (e o investimento em cultura) pode provocar na realidade concreta de comunidades e periferias do Rio.
É um conjunto profissional, sustentado pelo patrocínio da Light, que desde outubro tem levado o grupo a mais de 20 municípios da área de concessão da empresa, oferecendo concertos gratuitos em escolas, praças, teatros e universidades, tornando possível para milhares de pessoas assistir a uma orquestra ao vivo pela primeira vez. Vassouras, Nova Iguaçu, Piraí, São João de Meriti… A estrada é longa.

O TEMPO REAL acompanhou a viagem da Orquestra Light na Estrada para Volta Redonda, no Sul Fluminense. Lá, a plateia do Teatro Maestro Franklin de Carvalho Júnior é formada em sua maioria por inquietos estudantes do Ensino Fundamental. Antes do concerto, quem se dirige à plateia é o produtor executivo Matheus Bernasconi. Propõe um pacto simples: “Agora pode fazer todo o barulho do mundo. Mas quando a orquestra entrar, tem que fazer silêncio absoluto para a afinação dos instrumentos”. O efeito é imediato e a algazarra se impõe. Cantam “parabéns pra você” sem aniversário nenhum, gritam os nomes de colegas sentados do outro lado da sala…
Mas, como combinado, minutos depois o silêncio se instala no instante em que o maestro Henrique Machado conduz a entrada do grupo.
O clima que se instala ali, entre expectativa infantil e uma atenção que ainda tateia a música de concerto, é o território onde a orquestra aprendeu a atuar. Henrique sabe que o público diante dele não é homogêneo. O concerto, por isso, precisa falar múltiplas línguas — e fazê-lo com naturalidade.
“O repertório passeia por diversos lugares, e a ideia desse trânsito é atender aos diferentes públicos”, explica o maestro, ele mesmo formado por projetos sociais na infância. “Estão ali crianças que conhecem as trilhas de filme, os mais velhos que gostam de música erudita, gente que nunca viu orquestra nenhuma”.

O efeito se revela quando a orquestra dispara, na abertura do concerto, a “Cavalaria ligeira”, de Franz von Suppé — e o teatro reage como quem lembra de conhecer o tema de algum desenho animado. O violinista Isaac Newton conta que gosta da peça exatamente por isso, “porque me leva à infância”, e porque traz, no meio da precisão técnica, uma energia que é capaz de empolgar mesmo quem não é íntimo do repertório clássico.
Noutro momento da apresentação, o maestro pergunta quem gosta de cinema. As mãos sobem, e o teatro se reorganiza em expectativa. As trilhas sonoras de filmes como “Piratas do Caribe”, tocadas com rigor sinfônico, criam uma zona comum onde o clássico e o cotidiano se encontram sem esforço. A orquestra trabalha esse ponto: oferecer camadas distintas de reconhecimento num mesmo concerto.
A apresentação se encerra com a síntese dessa lógica de aproximação, no medley “O melhor da minha terra”, com arranjo do próprio maestro.
“A gente pensou naquelas músicas que as pessoas reconhecem já nas três ou quatro primeiras notas e já começam a cantar. Tem Seu Jorge, Alcione e Raça Negra. É assim que levantamos mesmo quem está resistindo até os 45 do segundo tempo”, diz o regente. É o momento em que o teatro vira baile.
Nos bastidores desse deslocamento, a engrenagem depende de outra orquestração. Marcelo Lima, roadie e produtor, corre de um lado ao outro do palco, atento a cadeiras (uma vez, teve que voltar no meio da viagem para buscar o assento do contrabaixista), estantes, cabos, imprevistos. Também instrumentista, ele vê na estrada uma experiência de ampliação: “A gente sai das quatro paredes. Ver o Brasil pra mim é tudo”.
A violinista Beatriz Araújo vive outra travessia. Começou a estudar violino no AfroReggae, em Parada de Lucas, aos 12 anos, hoje é mãe de Laura Beatriz, de sete meses. Ensaiou grávida até duas semanas antes do parto. Depois voltou.
“A música foi transformadora na minha vida. Tudo que tenho veio dela”, define. Dos muitos momentos bonitos que viveu no projeto Orquestra Light na Estrada, ela lembra de uma apresentação num CIEP lotado em que crianças reconheceram um tema do desenho “Tom & Jerry” e ficaram empolgadíssimas, cantando juntas e depois pedindo bis. Um encanto que ecoa seu próprio despertar para a música ali no início da adolescência, quando viu um violino pela primeira vez.
“Imagino que nessas plateias têm algumas crianças como eu fui, e que no futuro estarão tocando também, tendo suas vidas transformadas”, projeta Beatriz.
Essa identificação é uma constante. Juliana Morrison, baterista e percussionista, percebe que as crianças se veem no palco — não numa lógica aspiracional distante, mas como quem enxerga uma porta aberta.
“Eles olham para nós e pensam: são como eu. Estão ali agora, daqui a pouco posso estar também”. Para ela, que é da Rocinha e achava a percussão sinfônica “coisa distante”, a orquestra é oportunidade e chão: disciplina, foco, rigor. “Se um erra, todo mundo erra”, diz.

A precisão e a abertura para a escuta do outro acabam sendo lições que levam para a vida.
O trompetista Willames Barros, pernambucano criado no Rio das Pedras, chama a atenção para um ponto importantíssimo, mas muitas vezes invisível: a estabilidade.
“A Orquestra Light da Rocinha dá uma garantia de um tempo em que você consegue respirar sem precisar correr atrás de trampo o tempo todo pra pagar as contas”. E isso motivado pela beleza do gesto social. “Levar música de concerto pra quem nunca teve acesso é muito importante. É caro, é distante da vida dessas pessoas. Mas não deveria ser”, diz o trompetista.

A turnê entra agora em sua reta final, com próximas paradas em Paracambi, Japeri, Nilópolis, Engenheiro Paulo de Frontin e Pinheiral. Em cada cidade, a fórmula se repete e se transforma: plateias que descobrem a vibração de um conjunto sinfônico pela primeira vez; crianças que sobem ao palco para reger por um minuto e saem sambando; músicos que reconhecem noutros territórios a mesma centelha que os trouxe até ali.
No fim, o que a Orquestra Light na Estrada desloca não é só repertório — é o imaginário sobre quem pode ocupar um palco, sobre que som cabe numa orquestra, sobre de onde pode vir a vontade de tocar. A estrada, de volta à noite, reencontra o ônibus. Os instrumentos retornam aos cases. A conversa retoma seu curso banal, agora com um tanto mais de cansaço.
Mas a energia deixada nas cidades por onde passam segue ativa, no encanto das crianças e na memória dos músicos, circulando e movimentando vidas como uma eletricidade de outra natureza.

