Parecia uma quarta-feira como outra qualquer, e eu estava voltando de Caruaru, onde ia com muita frequência namorar a Celinha. Sem nunca ter ouvido falar no general Olímpio Mourão Filho, cheguei na estação rodoviária do Recife pouco antes das sete horas da manhã.
Meia hora depois, andando a pé, já que táxi era caro e não havia linha de ônibus urbano no trecho percorrido, ao cruzar uma ponte no canal do Derby, a uns cem metros da Casa do Estudante de Pernambuco, onde morava com umas quatro centenas de estudantes pobres, fui barrado por soldados do Exército armados com fuzis e baionetas.
Grosseiramente, exigiram que mostrasse meus documentos. Perguntaram meu destino e, ao ouvirem minha resposta, conversaram entre si e autorizaram minha passagem, alertando ameaçadoramente:
— Cuidado, hein? Sabemos que onde você mora está cheio de estudantes comunistas.
Sem nenhuma informação adicional, adentrei na residência estudantil, e meus colegas de quarto se mostraram aliviados, pois não sabiam o meu destino.
Àquela hora, as rádios já anunciavam prisões de líderes classistas, políticos, operários e estudantes. Rapidamente, toda a Casa do Estudante começou a recolher qualquer livro, jornal ou revista que pudesse ser usado em acusação de subversão, e jogá-los na caixa d’água do prédio. Na azáfama gerada, iam para a água desde O Vermelho e o Negro, de Stendhal, Seara Vermelha, de Jorge Amado, e Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, até a coleção de livros de bolso Cadernos do Povo Brasileiro, extraordinária publicação da Editora Civilização Brasileira, esta sim, leitura realmente de cunho esquerda-nacionalista.
Aqui abro um parêntese para informar aos mais jovens que cada caderno daquela coleção era dedicado a um tema e escrito por um renomado intelectual. De memória, eu consigo lembrar alguns dos quase 30 volumes da coleção:
• Francisco Julião – O que são as Ligas Camponesas?
• Barbosa Lima Sobrinho – Desde quando somos nacionalistas?
• Sérgio Guerra Duarte – Por que existem analfabetos no Brasil?
• Álvaro Vieira Pinto – Por que os ricos não fazem greve?
• Paulo Schilling – O que é a reforma agrária?
Passados quase 60 anos, pela atualidade de alguns temas, seria interessante que aqueles textos fossem reeditados. Fecho o parêntese e volto às minhas lembranças.
Após ajudar na faxina literária, ainda acreditando que haveria aulas, fui para a Escola de Engenharia, àquela altura já tomada pelos colegas prontos a irem em defesa do governador Miguel Arraes que, conforme os noticiários, seria deposto a qualquer momento. De peito erguido, cantando o hino nacional, nos dirigimos ao Palácio dos Campos das Princesas, sem a menor ideia do que iríamos fazer lá. E nunca soubemos, porque, ao chegarmos à Ponte Santa Isabel, já a encontramos interditada por tanques de guerra e soldados com armas ensarilhadas.
Com os arroubos reduzidos, em total silêncio e quase automaticamente, voltamos para a Escola e já a encontramos ocupada por militares. O nosso Diretório estava revirado, com móveis e utensílios destruídos por chutes e coronhadas. Alguns colegas encapuzados, soubemos depois, tinham sido conduzidos, sabia Deus para onde. Nada mais a fazer, nos dispersamos.
Naquele momento, eu ainda não tinha a percepção do tamanho da gravidade dos acontecimentos, e também não sabia que nunca mais veria alguns colegas daquela brancaleônica resistência.
Acabrunhado, mas, inocentemente, pensando que em uma ou duas semanas a normalidade voltaria, retornei para a Casa do Estudante que, registre-se, por inexplicável razão, nunca foi invadida ou incomodada pelos militares golpistas. Na verdade, a única consequência direta que sofremos foi ficar quase uma semana sem água, tempo gasto para limpar a caixa d’água e a canalização entupida por polpa de papel da mais alta qualidade literária.
Ah, aquela quarta-feira não foi como outra qualquer. A data era 1º de abril de 1964, e eu estava, sem ter como avaliar a extensão e a gravidade dos acontecimentos, vivendo a história e testemunhando o início dos vinte anos da fase política mais triste, covarde e nefasta do meu país.