Um dos principais articuladores do movimento pelo fim da escravidão na segunda metade do século 19, o engenheiro André Rebouças – negro e neto de uma escrava liberta – era igualmente abolicionista e monarquista; acompanhou Dom Pedro II e a Família Real ao exílio. O deputado Joaquim Nabuco – escritor, historiador e diplomata – foi, durante anos, a mais importante voz contra a escravidão no Parlamento brasileiro – e era também monarquista. Parece estranho e contraditório no olhar do século 21 já que a escravidão foi um dos pilares do Império do Brasil, último país das Américas a abolir a escravatura. Essa contradição já era cobrada de Nabuco, pelos políticos de seu tempo, e de Rebouças, entre as lideranças do movimento.
Mas eram casos raros – a maioria dos abolicionistas era liberal e republicano. O próprio Nabuco, na tribuna do Parlamento e nos jornais, era duro nas críticas a Pedro II pelo regime escravocrata. A assinatura pela Princesa Isabel, herdeira do trono, da Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888 (a chamada Lei Áurea), que extinguiu oficialmente a escravidão no Brasil deve ter ajudado uma aproximação entre abolicionistas e monarquistas naquele final do século 19.
Mais de um século depois, entretanto, está evidente que os quase 170 anos de monarquia transformaram o Brasil no principal destino dos negros cativos trazidos da África e que o regime escravocrata e o próprio formato da abolição estão na raiz da escandalosa desigualdade brasileira que atinge, principalmente, os descendentes dos escravizados. Os herdeiros dos abolicionistas, aqueles que lutam hoje pela igualdade social e de direitos e pelo fim do racismo estrutural, e os monarquistas do século 21, grupos que querem a família real brasileira de volta ao poder e a ela prestam homenagens, não trilham os mesmos caminhos e costumam estar em trincheiras políticas opostas.
Mas a história tem seus labirintos e encruzilhadas, caminhos tortuosos e estranhos – principalmente aqui neste Rio de Janeiro, capital do Império, maior porto de desembarque de escravizados do mundo no século 19. Nesta primeira quinzena de outubro, na igreja erguida no começo do século 18 no Centro do Rio, heranças abolicionistas e monarquistas voltaram a ser lembradas no mesmo espaço religiosos: a história da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito dos Homens está igualmente ligada ao movimento abolicionista e à família imperial do Brasil.
Voltemos ao século 17. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos nasceu, em 1667, da unificação das confrarias formadas por negros trazidos da África, então já libertos ou ainda escravizados. No continente africano, a devoção à Nossa Senhora do Rosário foi levada por missionários portugueses ao antigo Reino do Congo, de onde vieram parte dos escravizados. São Benedito – negro, filho de etíopes, cozinheiro e porteiro de um convento na Sicília – tinha muitos devotos em Portugal e na Espanha, principalmente entre os escravizados; devoção que desembarcou no Brasil onde foi adotado por parte da comunidade negra convertida ao catolicismo.
Depois de décadas abrigada na igreja de São Sebastião, no Morro do Castelo, a irmandade se mudou em 1684 e, na primeira metade do século 18, começou a construir sua igreja na Rua da Vala, hoje Uruguaiana. Inaugurada em 1737, a igreja foi alçada, em seguida, à Catedral do Rio de Janeiro – a Igreja de São Sebastião, antiga catedral, estava literalmente caindo aos pedaços. E foi como catedral da capital da colônia que a igreja recebeu a primeira missa celebrada com a presença da família real portuguesa – logo após desembarcar no Rio em 8 de março de 1808, Dom João VI foi em procissão, com parte da família, até lá para assistir a uma missa em ação de graças pela sua chegada.
Esta mesma igreja, quase oito décadas depois, tornou-se a sede informal da Conferência Abolicionista, fundada em 1883, sob a liderança de Rebouças e do escritor e jornalista José do Patrocínio, para reunir associações e organizações abolicionistas. Nesta mesma igreja, a Princesa Isabel – seis meses antes do golpe que destituiu Pedro II – foi recebida com festa na missa que a irmandade mandou celebrar para comemorar o primeiro ano da abolição: eram tempos de conciliação entre abolicionistas e monarquistas.
Voltemos a este outubro do século 21. No dia 5, dia de São Benedito, na missa festiva em homenagem ao santo, a irmandade lembrou seus antepassados abolicionistas e suas raízes africanas. A celebração – depois do culto na igreja – terminou nas calçadas da Rua Uruguaiana com a apresentação de rodas de Jongo e de Tambor de Crioula, manifestações culturais de raiz africana. Dois dias depois, a festa – já sem essas manifestações culturais – foi dedicada a Nossa Senhora do Rosário em seu dia.
No dia 13 de outubro, no encerramento dos festejos aos dois padroeiros, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos ficou lotada de monarquistas, atraídos pela presença da “Princesa Dona Maria Gabriela de Orleans e Bragança”, representando “o Príncipe Dom Bertrand de Orleans e Bragança, Chefe da Casa Imperial do Brasil”, conforme divulgado pelas organizações monarquistas e pela própria irmandade. Dom Bertrand, aliás, sucedeu a seu irmão Dom Luís que, em 1996, deu o título de Imperial à irmandade, hoje oficial Imperial Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos.
Os herdeiros de Pedro II e seus seguidores monarquistas se esforçam – como no passado – para celebrar a Princesa Isabel como redentora e grande benemérita dos negros escravizados. Mas não há qualquer registro de engajamento a pautas do movimento negro como o combate ao racismo estrutural e as políticas afirmativas. Ao contrário. Dom Bertrand já disse que não há racismo no Brasil durante uma live em 2020. “Estão procurando criar esse problema racial, mas não conseguem. Aqui, todos nos damos bem. Aqui no Brasil, todos nós vivemos bem”, afirmou o bisneto da Princesa Isabel. O deputado bolsonarista Luiz Philippe Orleans e Bragança (PL/SP), sobrinho de Bertrand, disse que, na tribuna da Câmara, que a “escravidão é tão antiga quanto a humanidade” e, por esse motivo, “é quase um aspecto da natureza humana”.
Os monarquistas – na sua grande maioria – cerram fileiras na extrema-direita católica. “Deus criou a natureza para nós, homens. “O homem é o jardineiro de Deus. E eles [ambientalistas] acham que o homem é o grande predador”, disse dom Bertrand ao Estadão Conteúdo, em 2019. O deputado Orleans e Bragança critica “a ditadura do Judiciário”, defende o impeachment de ministros do STF e o fim da justiça do trabalho. Na pandemia, apresentou projeto de lei com objetivo de proibir a obrigatoriedade da vacina.
Mas, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, por esses caminhos tortuosos da história, a irmandade recebe o jongo e o terreiro de crioula, a bandeira do Brasil Imperial e os membros da família real. A igreja, que teve o interior destruído em 1967 por um incêndio, abriga ainda o Museu do Negro com esculturas, fotografias, indumentária e documentos, além de objetos ligados à escravidão. O museu reúne peças sacras e objetos da liturgia católica e também de culto ligados ao Candomblé. E, convivendo no mesmo espaço, objetos ligados ao Movimento Abolicionista e à Família Real e à Monarquia.
Texto publicado originalmente no #Colabora – Jornalismo Sustentável