Todo carioca sabe que o Rio tem um pé fincado no Nordeste. A presença nordestina é percebida em diversos aspectos da vida da cidade: na música, na comida, nas festas populares, na formação das favelas e até na árvore genealógica de muitas famílias. E, com a chegada das celebrações juninas de São João — santo comemorado oficialmente em 24 de junho — esse elo se torna ainda mais evidente.
A migração nordestina para o Rio se intensificou a partir da segunda metade do século 20, impulsionada por profundas transformações sociais, econômicas e políticas no Brasil. Segundo o professor Fernando Cordeiro, autor do livro “Nordestinos no Rio de Janeiro: legados e alteridades culturais”, publicado pela UFF, esse movimento populacional foi decisivo para a formação da metrópole carioca.
Décadas de 1950, 1960 e 1970
“A atração por melhores condições de vida e empregabilidade favoreceu o deslocamento massivo de trabalhadores para as metrópoles do Sudeste. Por sua vez, no Nordeste, a decadência do modelo de produção agrícola, a concentração de terras e de recursos econômicos, a falta de emprego fixo e permanente, bem como a ineficácia de políticas públicas de combate à seca, contribuíram para o processo migratório de nordestinos para o Rio e São Paulo, especialmente nas décadas de 1950, 1960 e 1970”, explica o professor.
‘Não foi fácil no começo, não’
Reginaldo Pereira, 67 anos, é um desses migrantes. Natural de João Pessoa, na Paraíba, chegou ao Rio aos 34 anos, ao lado da esposa, em busca de um futuro melhor.
“A gente veio com esperança de ter um teto, um trabalho, uma vida melhor. Lá na Paraíba estava difícil demais, quase não tinha serviço, e quando tinha era mal pago. Eu e minha esposa viemos acreditando que no Rio a gente podia recomeçar. Não foi fácil no começo, não. A gente passou perrengue, morou de favor, fez bico… Mas, com o tempo, conseguimos fazer dar certo”, destacou.
Reginaldo mantém vivas as tradições
Mesmo vivendo há mais de três décadas no Rio, Reginaldo mantém vivas as tradições da sua terra, sobretudo nesta época do ano.
“O São João, para mim, é sagrado. Não tem como passar sem milho, sem forró, sem fogueira acesa. A gente junta a família toda, faz canjica, pamonha, bolo de milho. É como voltar no tempo, lembrar da infância lá no interior. Dá uma saudade danada, mas é uma saudade boa, que aquece o coração”, narra.
‘Eu vim com 20 anos, cheia de medo’
Carolina Silva, 58 anos, migrou ainda mais jovem. Saiu de Salvador, na Bahia, aos 20 anos, enviada pelos pais para estudar no Rio e buscar oportunidades melhores de vida.
“Meus pais sempre diziam: ‘Vai pro Rio, filha, lá você vai ter mais chance na vida’. Eu vim com 20 anos, cheia de medo, mas também de esperança. No começo foi puxado, morei de favor, fiz curso à noite, corria atrás de trabalho o dia todo. Acabei virando costureira, consegui criar meus filhos com muito esforço e estou aqui até hoje”, conta.
E quando a saudade aperta, quando sente falta da sua Bahia, Carolina diz que basta sair à rua para se reconectar com suas raízes. Para ela, a presença nordestina está por toda parte no Rio: no sotaque de quem passa, no cheiro da comida, nas conversas no ponto de ônibus. Ela reconhece esse pertencimento no cotidiano e ressalta: o Nordeste também está aqui — e isso não pode ser ignorado.
Relação entre o Nordeste e as favelas cariocas
Outra migrante, Dileusa Gomes, pernambucana do Recife, vive no Rio há mais de 40 anos e já morou em favelas das zonas Norte, Oeste e Central. Para ela, a influência nordestina é ainda mais perceptível nas regiões periféricas.
“É só entrar em qualquer favela que você vai ver: nordestino tá em todo canto. Estamos na feira, na obra, no comércio, na cozinha. A gente se mistura. Nordestino é um povo que se vira, que batalha, e isso tem tudo a ver com quem mora em favela também. É gente que acorda cedo, corre atrás, enfrenta dificuldade e não desiste. Tenho muito orgulho disso”, afirma.
‘Poucas opções de moradia’
Essa relação direta entre o fluxo migratório nordestino e o crescimento das favelas cariocas também é analisada por Fernando Cordeiro. Para o professor, o processo migratório coincidiu com a urbanização acelerada e desordenada do Rio, em um contexto de forte concentração de renda.
“O processo migratório ocasionou, juntamente com o modelo econômico adotado, uma forte concentração de renda e exploração de mão de obra, gerando um aumento populacional substancial, urbanização desorganizada e um imenso déficit habitacional em cidades como o Rio. A residência em favelas e na periferia passou a ser uma das poucas opções de moradia para os migrantes nordestinos”, compartilha.
Foi, inclusive, durante uma festa junina na favela do Santo Amaro, no Catete, Zona Sul do Rio, que o jovem Herus Guimarães Mendes, de 24 anos, foi baleado e morreu enquanto o Bope realizava uma operação no local, na madrugada de 7 de junho. O caso gerou grande comoção por ter ocorrido durante os festejos juninos e resultou no afastamento de doze policiais, além dos comandantes do Bope e do COE.
Influência do Nordeste na identidade carioca
Mas, segundo o professor e escritor, a contribuição nordestina vai muito além das estatísticas — ela está gravada na identidade da cidade.
“As grandes transformações urbanísticas da cidade, ocorridas especialmente a partir dos anos de 1950, advieram, em grande parte, do trabalho dos migrantes de origem nordestina. Assim foi na edificação de prédios em diversos bairros da Zona Sul da cidade, nos quais alguns, posteriormente, passaram a atuar como porteiros nos edifícios que ajudaram a construir”, afirmou.
O legado inclui, ainda, a participação em obras monumentais, como a construção da Ponte Rio-Niterói, de acordo com o professor. E se estende ao campo cultural: a música, a culinária, a religiosidade popular e o modo de viver foram incorporados ao cotidiano da cidade.
Feira de São Cristóvão
Um dos maiores símbolos dessa presença é a tradicional Feira de São Cristóvão — oficialmente chamada Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas. Fundada nos anos 1940 e hoje instalada em um pavilhão de 37 mil m², o espaço reúne cerca de 700 barracas e mais de 100 restaurantes, recebendo entre 300 mil e 400 mil visitantes por mês.
No período das festas juninas e do Dia de São João, o professor Fernando Cordeiro ressalta a importância simbólica dessas celebrações, que remetem a um passado idealizado do mundo rural. Segundo ele, os festejos evocam memórias afetivas ligadas à vida simples no campo, à religiosidade popular e à cultura do interior, especialmente em regiões do Nordeste. Para o pesquisador, mesmo que esse passado nunca tenha sido vivido de fato, ele é revivido de forma lúdica durante o São João.
‘Prestigiar e viver a cultura nordestina’
“A música de Luiz Gonzaga, presente nos festejos juninos, bem traduz essa saudade de um passado, mesmo que nem tenha sido vivido. A influência da migração massiva é grande nos centros urbanos. Migrar não é se aculturar, mas trocar percepções, visões de mundo e manifestações culturais. A estreita associação dos festejos juninos com a cultura nordestina no Rio é, em parte, fruto desse processo migratório, sendo uma forma de prestigiar e viver a cultura nordestina”, finaliza.