A placa já indica o que esperar: Prainha da Glória. É uma prainha mesmo: a faixa de areia, às margens da Baía de Guanabara, não deve chegar a 300 metros de comprimento. E fica escondida atrás das pistas do Aterro do Flamengo, num canto próximo à Marina da Glória.
Este #RioéRua estava para visitar a Prainha da Glória desde o Carnaval após saber de um banho de mar à fantasia programado para aquelas areias. A curiosidade foi reforçada pelo boletim do Inea (Instituto Estadual do Ambiente) na primeira quinzena de agosto com a informação de que oito praias da Baía de Guanabara estavam próprias para banho neste inverno carioca: três na Ilha de Paquetá (inclusive a famosa Praia da Moreninha), três em Niterói e duas no Rio de Janeiro – a Praia do Flamengo e a Prainha da Glória.
A presença das duas juntas na lista é natural: a prainha é uma extensão da longa (quase 1.700 metros de comprimento) praia vizinha, separada apenas um pequeno quebra-mar. E a balneabilidade deve se repetir na Esplanada Verde, uma faixa de areia ainda menor; essa micro-praia ficou fechada por décadas, com acesso restrito a proprietários de barcos ancorados na Marina, até ser recentemente reaberta ao público.
Na caminhada da estação do metrô da Glória até a beira-mar (são 15 minutos a pé, distância semelhante para a estação Catete), é impossível não pensar nas mudanças sofridas naquele trecho da orla da Baía de Guanabara. Na virada do século 19 para o século 20, da Praia do Flamengo ao Cais Pharoux, na Praça XV, onde era o antigo porto do Rio, haviam seis praias: do Russel, da Glória, da Lapa, do Boqueirão, de Santa Luzia e de Dom Manuel. Todas foram desaparecendo a partir do aterro para a abertura da Avenida Rio Branco e a construção da Avenida Beira-Mar (pelo prefeito Pereira Passos na primeira década do século 20); seguiram-se aterros para a instalação dos pavilhões da exposição internacional comemorativa do Centenário da Independência em 1922, para a construção do Aeroporto Santos Dumont na década de 1930 e, finalmente, para o Parque do Flamengo, o que incluiu as pistas ligando Copacabana ao Centro.
A antiga Praia da Glória fez parte do cenário de Dom Casmurro, que reli recentemente após Machado de Assis ter tido seu momento viral no Tiktok. De frente para o mar da Praia da Glória, foram morar Bentinho e Capitu após se casarem. “Passávamos as noites à nossa janela da Glória, mirando o mar e o céu, a sombra das montanhas e dos navios, ou a gente que passava na praia. Às vezes, eu contava a Capitu a história da cidade, outras, dava-lhe notícias de astronomia; notícias de amador que ela escutava atenta e curiosa”, relata o protagonista do romance machadiano. É ali que, após a morte por afogamento do amigo Escobar, na vizinha Praia do Flamengo, que Bentinho começa a alimentar a desconfiança que envenenaria sua relação com Capitu, por quem era apaixonado desde criança quando ambos moravam no Centro (na Rua de Matacavalos, hoje Riachuelo). “O resto é saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente”, reflete o protagonista no fim do livro.
Mas, tentando recriar a geografia da orla do passado, a Prainha da Glória do século 21, está localizada onde, no começo do século passado, ficava a Praia do Russel – em uma reta do mar aos prédios, a prainha fica na direção do Hotel Glória, na Rua do Russel. O nome da praia vinha do engenheiro João Frederico Russel, dono do palacete que ocupava grande parte da orla e foi demolido para a construção do hotel, inaugurado em 1922.
Neste dia ensolarado no inverno de 2024, o mar da Prainha da Glória – calmo e sem ondas como de hábito – está com águas límpidas que confirmam os testes de balneabilidade do Inea. É quinta-feira, dia de trabalho para a maioria, e poucos banhistas aproveitam o mar e a beleza da Baía de Guanabara, com a vista do Pão de Açúcar emoldurando o horizonte. A barraca do Boca garante a cerveja gelada, biscoitos salgados para os adultos e doces para as crianças. “Em dias assim, parece o mar do Caribe”, atesta o aposentado Mauro Gomes, que mora na Rua do Russel.
O mar nem sempre está assim na Prainha da Glória e nestas outras praias da Baía de Guanabara que aparecem naquele boletim, mas dias assim ainda eram impossíveis em 2016, quando o Rio de Janeiro sediou os Jogos Olímpicos. A candidatura prometia como legado a despoluição da baía, mas as provas de iatismo foram disputadas em meio a reclamações sobre lixo e sujeira no mar. As necessárias obras de saneamento básico no entorno e de drenagem nos rios não foram feitas: a Baía de Guanabara é cercada por sete municípios e só dois (Rio e Niterói) tem índices satisfatórios de coleta e tratamento de esgoto. Ao todo, 35 rios desaguam na baía, muitos trazendo esgoto doméstico e industrial em suas águas.
Não deixa, entretanto, de serem bons sinais que, 30 anos depois do lançamento do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara, seja possível encontrar praias próprias para o banho de mar nas suas margens. A concessionária Águas do Rio, responsável pelos serviços de água e esgoto em todo o entorno da baía, está fazendo uma série de obras nas estações de tratamento e nas redes coletoras com o objetivo de melhorar o saneamento nos municípios e, por conseguinte, avançar na despoluição da Baía de Guanabara. A melhoria da qualidade da água na Praia do Flamengo e na Prainha da Glória – que aparecem agora frequentemente como próprias para banho nos testes de balneabilidade – foi alcançada com o desvio das águas do Rio Carioca, que desaguavam na baía, para dentro do interceptor oceânico. Foi uma intervenção simples na comparação com as outras obras de saneamento que ainda precisam ser feitas. Mas ver banhistas mergulhando na Prainha da Glória é um sinal de vida e de esperança para a Baía de Guanabara.
Texto publicado originalmente no #Colabora – Jornalismo Sustentável