Há algum tempo, eu tomei uma decisão que me fez morrer um pouco. Por absoluta falta de espaço físico, resolvi doar a maioria dos meus livros.
Decidi com grande pragmatismo e algum altruísmo: “Já que não tenho onde guardá-los, nem me resta tempo de vida suficiente para relê-los, vou dá-los a outras pessoas que, sem meios para comprá-los, possam usufruir deles”.
Com o coração apertado, iniciei a seleção dos livros obedecendo a alguns critérios que criei para facilitar a empreitada. Primeiro, seriam aqueles que me foram dados, mas nunca me despertaram o desejo de lê-los. Foi muito fácil.
Em segundo lugar, aqueles que eu já tinha lido uma vez e nunca tive o desejo de fazê-lo novamente. Foi fácil.
Depois, viriam os livros que eu já tinha lido várias vezes ou que estivessem em mau estado de conservação. Aí o negócio ficou difícil. Explico. Ora, eu os tinha lido várias vezes exatamente porque gostava deles, e se estavam em más condições era justamente por terem sido muito manuseados. Quase todos tinham anotações muito pessoais, que refletiam algum momento da minha vida. Atualmente, certamente eu não as escreveria do mesmo jeito, talvez eu hoje tivesse uma outra opinião sobre cada um daqueles assuntos. Mas aquelas anotações, se reunidas, poderiam contar a história da minha vida, dos 16 aos quase 80 anos. Sim, porque eu ainda tinha, e tenho, livros comprados há mais 60 anos. Muitos deles até já foram substituídos por edições mais novas.
Diante da dificuldade, inventei novos critérios.
Não doaria nenhum livro com anotações pessoais, nem com dedicatórias dos autores. Vetei também aqueles com dedicatórias dos presenteadores. Tudo aquilo era muito pessoal para cair nas mãos de desconhecidos. Também ficaria com os livros que ainda pretendia reler. O mesmo eu faria com aqueles que, de um modo ou de outro, me faziam recordar lugares, acontecimentos, pessoas e sonhos.
O resultado foi que sobraram muitos poucos livros para a bendita doação. E o problema de espaço em casa perdurava. Para contornar o contratempo, resolvi manter apenas os livros com as anotações. E recortar e guardar apenas as páginas com as dedicatórias dos muitos volumes que ganhei ao longo da vida e que seriam passados adiante.
Mas, e os livros que, apesar de lidos inúmeras vezes, ainda me despertavam desejos de releituras? Não dava para ficar com todos. Passei um pente fino e guardei aqueles em melhores condições, sem rasgos ou páginas mofadas.
Após a entrega dos pacotes na biblioteca da instituição filantrópica fui possuído por um abatimento, quase depressão, que persiste até hoje e somente tem sido amenizado quando, vez ou outra, eu compro uma nova edição de um daqueles livros doados. Um dos que me ajudaram a viver. Viver uma vida que ficou esvaziada sem a concreta presença deles, mesmo velhos, rasgados e mofados, tais como a minha própria existência.
Sr. Alfeu… eu te entendo. É duro. É como perder um pedaço da gente.
Alfeu, eu doei toda minha biblioteca, não por falta de espaço, mas porque, aos 84 anos, achei que já era tempo de fazer isso. Doei livros, CDs, Dvs e equipamentos eletrônicos à Biblioteca da Escola Estadual Rodolfo Paiva, de São Bento do Una. (PE). O bibliotecário da Escola, em agradecimento, abriu uma seção especial só com meu acervo.
Fiquei feliz.
Sei perfeitamente o que é isso.Há 20 anos ,com a viuvez ,dois filhos casados e uma caçula indo morar em Brasília,me desfiz de um ap.de 183 metros e passei a morar no bairro dos meus sonhos em 92 metros .Me desfiz de quase tudo ,ou melhor, não fiquei com quase nada. Nunca me arrependi .Amo morar no meu pequeno e bem projetado ap.
Que artigo bacana Alfeu! Tenho certeza que você descreveu o sentimento de muitos de nós ao tomar essa decisão. Um pedaço de nós vai junto com os livros.
Tem alguns livros que posso guardar na minha casa com muito carinho, principalmente vindo de um grande incentivador das minhas leituras.
Alfeu, eu faço parte dos “ sem meios para comprá-los”, não sou doador, e sim receptor dos livros. Também não acho você um homem “Velho, rasgado e morfado”, você é luz, raio, estrela e luar. Um forte abraço!
Bem sei o que é esse sentimento… tive que doar “todos” os meus, devido a asma que retornou na velhice… imitei alguém que fez isso, colocando-os no ponto do ônibus quando estava vazio, com um bilhete, e ficava escondida em algum lugar vigiando quem ia levar. Me emocionava cada vez quando alguém os apanhava e ficava abraçada como se estivesse apertando uma criança contra o peito… isso me confortava.
Alfeu , faço parte dos que trocam livros em sebos,
aqui em Macaé tem um muito interessante.
Alguns confesso que não tive coragem de me desapegar inclusive os escritos por vc .
Lindo artigo escrito por vc .
Já fiz essa limpeza, porém sem muitos critérios. Continuo com a estante cheia. Vou copiar seus critérios e criar espaços. Abs
Alfeu, foram estes livros, velhos e mofados, que lhe ajudaram a manter, até hoje, essa sua mente jovem e inteligente!! Abraço !!
É admirável a habilidade que o senhor tem com o trato das palavras , consegue tornar divertido para nós algo que é dolorido para o senhor . 👏👏👏👏👏
Muito sensivel Alfeu!
Para escolher, tem que abandonar… pequenha morte…