O jovem leitor não sabe – e o velho possivelmente não se lembra: cerca de 25 anos atrás, a rua Barão de Iguatemi, nas imediações da Praça da Bandeira, não era nada apetitosa…. De notável, ali, só mesmo o motel mal iluminado que abrigava as noites fugidias de frequentadores da vizinha Vila Mimosa.
Pois era ali mesmo, no começo dos anos 2000, que dois dos nove filhos da lavadeira paraibana Sofia tocavam um botequim qualquer chamado Aconchego Carioca. Objetivo inicial do negócio: sobreviver, e nada mais.
Mas o talento da família para cozinhar era imenso. Tanto que hoje, quase 25 anos depois, o Aconchego Carioca é um patrimônio da gastronomia carioca. A Barão de Iguatemi é um pólo gastronômico conhecido, e a filha mais nova da dona Sofia, uma consagrada embaixadora da culinária brasileira no mundo.
Eis que agora essa mesma embaixadora – que já foi dona de dez bares e restaurantes famosos no Rio e em São Paulo, e estrela de programa de TV – resolveu voltar de vez para onde tudo começou. O Sofia, restaurante de comida afetiva brasileira inaugurado no fim do ano passado bem ao lado do Aconchego Carioca, ali mesmo na Rua Barão de Iguatemi, é a casa onde a premiada cozinheira Kátia Barbosa decidiu ser feliz do jeito que sempre sonhou. Sem sócios para encer o saco, sem metas agressivas de crescimento para cumprir, sem novas dívidas para assumir. Apenas fazendo o que mais ama, que é cozinhar, e com uma equipe quase 100% feminina. E ela está conseguindo.
Mas como sempre, claro, pelo caminho mais difícil. A fama e o prestígio que fizeram Katita rodar o mundo cozinhando permitiriam que a inventora do bolinho de feijoada abrisse um restaurante novo onde quisesse. Mas dessa vez ela preferiu uma iniciativa 100% autoral. E 100% Zona Norte, onde ela nasceu. “Não tenho mais saco para Leblon nem Ipanema. Meu desafio pessoal hoje é provar que a Tijuca também é viável para gastronomia de qualidade”, diz ela, com a sinceridade desbocada e amorosa que sempre a marcou, desde os tempos do primeiro Aconchego.
Por isso agora é ali, no restaurante Sofia, que a outrora caçula Katita – hoje a segunda matriarca de uma família com duas filhas e uma neta, além da própria dona Sofia, de 93 anos – empreende sua cruzada quixotesca (mas muito bem sucedida!) pela valorização da comida brasileira sem rótulos nem fronteiras. Montada na criatividade rocinante de seus pratos ao mesmo tempo regionais e universais, luta contra moinhos nada imaginários de preconceitos e narizes torcidos, para atrair cada vez mais às suas mesas d`além túnel as dulcinéias da Zona Sul.
Não tem sido fácil, claro. Mas pouco a pouco, ela está conseguindo. Graças, por exemplo, a um cardápio fixo recheado de insumos artesanais bem selecionados, apresentados em releituras criativas de receitas populares. E a um estímulo imperdível para quem gosta de surpresas: todas as quintas-feiras, a Noite das Provinhas oferece uma degustação de cinco criações sempre inéditas, feitas com ingredientes sazonais. Desde que começou com isso, há cinco meses, Katita já criou e recriou mais de 100 receitas diferentes. E contando…
No Sofia, Katita homenageia suas origens através do nome da mãe. Mas ela reconhece que o legado culinário que a sua família perpetua vem mesmo é do pai, seu Ermiro. “Foi ele que me transmitiu o prazer pelo ato de cozinhar. Desde a ida à feira, para escolher os ingredientes, até colocar a comida pronta na mesa”, lembra ela. “Mas por outro lado, foi minha mãe que me deu o talento, bem brasileiro, de saber fazer a comida render”, completa.
E é com essa experiência de fazer comida a partir da dificuldade, da memória e do afeto que o Sofia da Katita tenta – e consegue – oferecer aos seus visitantes uma experiência realmente original de gastronomia brasileira. Aquela que apresenta uma comida criativa e sofisticada, sem tirar os pés do chão. Sem deixar de ser simples, farta, acessível. E, sobretudo, muito além dos bolinhos de feijoada.
Excelente texto! Me refaz s crença no jornalismo bem-feito, de paladar, neste caso aqui, literal, a provocar lagos na boca. Congratulações.