Há um ano eu tinha 80 anos. Oito décadas vividas à plenitude e nunca tinha lido, ou sequer ouvido, a palavra serendipidade. Do mesmo modo, desconhecia a escritora Ana Maria Gonçalves e, consequentemente, o seu livro “Um defeito de cor”. Envergonhado, confesso que a minha ignorância literária perdurou até ler, em algum lugar, a opinião de Millôr Fernandes: “O melhor romance escrito na literatura ocidental. Te cuida, Saramago!”. Aquilo bastou. Opinião de Millôr é para ser considerada e respeitada. Busquei mais informações e titubeei ao saber da espessura do romance: novecentas e tantas páginas. A avaliação do bendito Millôr me deu forças para enfrentar o desafio e fui em frente.
Já na apresentação do romance, a autora se vale de uma serendipidade para explicar a inspiração que a levou a escrever o livro e já ali ela prende e cativa o leitor. Não darei “spoiler”, mas duvido que após aquela introdução alguém não continue a leitura. E o fazendo, não se apaixone por Kehinde. Por ela, como personagem, e por sua história que se confunde com a história de nosso país e explica a bonita e salutar influência africana na nossa cultura.
Certamente, a escrita desse romance exigiu de Ana Maria Gonçalves muitos meses de pesquisas que subsidiaram a brilhante mistura de verídicos fatos históricos, e o contexto social da época, com sua ficção criativa e bem elaborada.
“Um defeito de cor” é um romance histórico que conta a vida de Kehinde, uma menina africana do Reino do Daomé (atual Benin) sequestrada aos 8 anos com sua irmã gêmea, e a sua avó. Ao longo de quase oito décadas ela enfrenta a escravidão e conquista a liberdade sem, em nenhum momento, abandonar a sua religiosidade e seus costumes de raízes africanas. O livro é escrito como uma longa carta de Kehinde ao filho desaparecido e essa narrativa, em primeira pessoa, cria uma intimidade com o leitor que mergulha nos acontecimentos como se fizesse parte deles.
O romance cobre diferentes fases da vida de Kehinde, alternando entre memórias da África e a dura realidade do Brasil colonial. Além de detalhadas descrições de rituais religiosos, a linguagem é rica e cheia de expressões de origem africana e regionalismos brasileiros, o que confere autenticidade ao texto.
Resumindo, os temas principais do livro são a escravidão, a busca pela liberdade, a luta contra o preconceito e a afirmação da identidade negra e religiosa. E não se nega a recontar a história real do Brasil a partir do ponto de vista negro e marginalizado. Assim, o livro dá voz àqueles que foram silenciados pelas versões oficiais. Em suma, o romance é uma obra densa, essencial para compreender a escravidão e suas consequências. Dando razão ao comentário de Millôr, o livro é um marco na literatura afro-brasileira e um convite à reflexão sobre identidade e liberdade.
Agradeço e parabenizo Ana Maria Gonçalves pela qualidade e fôlego da obra, recentemente reconhecida pela ABL, que a tornou imortal.
E por falar em serendipidade…
Ah, estava esquecendo, Serendipidade é o termo que descreve a ocorrência de um evento feliz e inesperado, ou a descoberta acidental de algo valioso. Foi o que me aconteceu ao acessar a opinião de Millôr Fernandes sobre esse “Um defeito de cor”.
OBS: A protagonista Kehinde é baseada em Luísa Mahin, uma figura histórica que participou da Revolta dos Malês, ocorrida em Salvador, capital da Bahia, em 24 de janeiro de 1835, e no seu filho Luís Gama, um dos maiores abolicionistas do Brasil.
Tropa dos ignorantes. Não conheço a autora nem li o romance, confesso envergonhada. Mas vou resolver isso…
Nem preciso repetir que sou sua fã, Alfeu! Sempre nos mostrando novas perspectivas de coisas da vida e nos induzindo a pensar- caminho principal para o crescimento!…