Inaugurado em 1984, sob feroz oposição, Sambódromo da Marquês de Sapucaí inspirou espaços semelhantes para desfiles por todo o Brasil
Eu testemunhei o desfile histórico da escola de samba Império do Marangá. Os mais jovens podem achar que este veterano jornalista está começando uma crônica do samba doido ou então é muito mais veterano do que revela essa cabeleira grisalha. Mas é fato: a Império do Marangá, extinta no fim do século passado, fez um desfile histórico; foi a primeira escola a desfilar na Passarela do Samba — a Avenida dos Desfiles, como foi chamada inicialmente, ou o Sambódromo da Marquês de Sapucaí. Foi há 40 anos e, em 1984, este então jovem jornalista estava lá, a serviço do também extinto Jornal do Brasil, para cobrir o primeiro Carnaval no novo palco das escolas de samba do Rio de Janeiro.
Havia um clima de festa, mas muitos sambistas não compartilhavam dessa animação. A Passarela do Samba, idealizada pelo governador Leonel Brizola e seu vice, Darcy Ribeiro, estava longe de ser uma unanimidade apesar de, ano após ano nas duas décadas anteriores, todos ligados ao Carnaval – sambistas, dirigentes de escolas, políticos, veículos de comunicação — reclamassem da saga anual da montagem e desmontagem das arquibancadas metálicas para o desfile: eram três meses para levantar a estrutura, mais três meses para desmontar, sem contar os atrasos e as denúncias variadas, de incompetência à corrupção. Brizola, gestor experiente, decidiu criar a estrutura permanente; Darcy Ribeiro, sonhador profissional, encomendou a Oscar Niemeyer o projeto.
A nova ‘Avenida dos Desfiles’ teria arquibancadas e camarotes (que serviriam como salas de aula o resto do ano), um Museu do Samba, e um espaço amplo, a Praça da Apoteose, no fim da passarela para que os sambistas pudessem evoluir como quisessem, sem amarras, como imaginava Darcy. Já era uma obra polêmica e, para bagunçar mais este enredo, o governo, que organizava os desfiles, decidiu ainda dividir o desfile do Grupo Especial em dois dias, domingo e segunda de Carnaval, rompendo uma tradição de meio século.
Para quem não viveu os anos 1980, aqui no Rio, vale lembrar que o Governo Brizola enfrentou oposição sistemática da mídia, com as Organizações Globo à frente, em quase todas as áreas. Desde o anúncio da construção do sambódromo, as críticas foram diárias sobre o projeto, os custos, o material, as inovações para o desfile A TV Globo, além da má vontade histórica com o político gaúcho, ficou irritada com a divisão do desfile em dois dias, o que significava atrapalhar a sagrada exibição do capítulo de sua novela na segunda-feira. A divisão em dois dias também sofria resistência da maioria dos dirigentes das escolas. Brizola e Darcy bateram pé de um lado, a Globo ficou irredutível do outro: e os direitos de transmissão do desfile acabaram com exclusividade para a TV Manchete (também extinta) – o que deixou os patronos (leia-se banqueiros do jogo do bicho) das escolas ainda mais preocupados.
Não deu tudo certo em 1984. A confusão no trânsito nas cercanias do desfile foi enorme, houve reclamações contra a qualidade do som e da iluminação e foram registrados problemas de estrutura na Passarela. No mais grave, uma rampa na arquibancada da Apoteose cedeu (mas não caiu) no primeiro dia de desfile – uma sexta-feira, 2 de março – quando houve a inauguração oficial e o desfile do grupo de acesso, aberto pela Império de Marangá, uma pequena escola de Jacarepaguá, recém-promovida, que desfilou sem carros alegóricos e com apenas metade da comissão de frente.
Foi a primeira madrugada que virei na Passarela do Samba: acompanhei os engenheiros João Carlos Sussekind, responsável pelo projeto ao lado de Niemeyer, e João Otávio Brizola, filho do homem, na vistoria da rampa e das arquibancadas em geral. O sucesso do desfile foi indiscutível. As escolas de samba, mesmo com as reclamações, pareciam ter caprichado. A Portela fez seu desfile mais espetacular em mais de uma década – e o melhor que eu vi até hoje – com seu enredo Contos de Areia. “Jogo feito, banca forte / Qual foi o bicho que deu? / Deu Águia, símbolo da sorte / Pois vinte vezes venceu / É cheiro de mato / É terra molhada / É Clara Guerreira / Lá vem trovoada”, dizia a letra do samba em homenagem a Paulo da Portela, Natal e Clara Nunes, cantado até hoje nas melhores rodas.
Outros sambas do ano também atravessaram esses 40 anos. “A grande paixão /Que foi inspiração /De um poeta é o enredo”, começava o maravilhoso samba de Martinho para a Vila Isabel. “Roda, ó meu Salgueiro / Roda e vem mostrar / O canto de quem ama, acende a chama / Viajando no meu doce olhar/ Oiá, oiá /Água de cheiro pra ioiô / Vou mandar buscar /Na fonte do senhor”, terminava o samba do Salgueiro, sucesso na quadra ano após ano.
Mas o Carnaval 1984 foi da Mangueira, que, após exuberante desfile homenageando Braguinha e sem saber como encerrar sua evolução na Praça da Apoteose (alvo de queixa de todas as escolas), voltou pela ‘contra-mão’ da avenida, arrastando foliões que, a essa altura, já tinham invadido a pista. Foi apoteótico (com trocadilho). E consagrou o sucesso da nova Passarela do Samba, uma vitória de Brizola e Darcy sobre seus críticos. Não foi a única: a Manchete aplicou a maior surra de audiência na Globo com a transmissão dos desfiles em dois dias. Estavam consagrados o novo sambódromo e a divisão dos desfiles – ainda naquele ano, Castor de Andrade, banqueiro de bicho com ligações com a Globo, lideraria a criação da Liesa, a liga para representar as grandes escolas, inclusive na negociação com o governo e dos direitos de transmissão.
No Carnaval de 1985, Globo e Manchete dividiram a transmissão dos desfiles. A evolução na Apoteose deixou de ser obrigatória; logo, a praça ‘sumiu’ durante os desfiles para dar lugar a mais espaço para o público. No primeiro Carnaval do sambódromo do Rio (hoje muito justamente batizada de Passarela do Samba Darcy Ribeiro), virei quatro madrugadas trabalhando – na inauguração na sexta, no desfile de blocos de enredo no sábado, nos dois dias da escola de samba, quando iniciante não acompanhei as escolas, mas os percalços de quem não tinha ingresso e se espremia no viaduto ou na grade para ver um pouco do samba.
Nos 20 anos seguintes, estive lá em todos os Carnavais. Os mais antigos podem se lembrar de mim levando água para uma baiana da Mangueira, derretendo de suor no fim do desfile, ao meio-dia, do Ziriguidum 2001 da Mocidade em 1985, com água até a canela no desfile sob tempestade da Beija-Flor em 1986, usando desajeitadamente o bloco como tamborim e a caneta como baqueta um pouco à frente da furiosa bateria do Salgueiro em todos os anos (foram muitos, até 2004) em que a escola era a única sem rainha de bateria – porta-bandeira e mestre-sala vinham ali, naquela área nobre.
Ao longo dos anos, foram feitas adaptações na construção de 1984 (e também mudanças para seguir o projeto original) mas, ano após ano, os espectadores aplaudem o espetáculo e o palco se moderniza. Agora, em 2024, a novidade é que a maioria das escolas vai usar iluminação cênica como atração no desfile – ainda a ver se será outro sucesso.
Testemunhei, portanto, a consolidação da vitória do projeto de Brizola e Darcy. A ideia de um espaço especial para os desfiles do samba foi copiada por todo o país. A Apoteose, criticada pelos sambistas, seguiu servindo, no resto do ano, como palco de shows para a história do Rio: vi lá Rolling Stones, Plant & Page, Eric Clapton, Bob Dylan. A Liga das Escolas de Samba assumiu a organização dos desfiles na Passarela e tornou o evento cada vez mais rentável.