A tragédia repetida e a hecatombe climática são sinais de que os seres humanos serão varridos do planeta
Quatro dias em casa por conta dos temporais no Rio e pude ver repetida, dezenas de vezes, nas telas da TV, do computador e do celular a imagem da pequena Ayla, uma criança negra de 4 anos, no colo de um bombeiro, após ser retirada dos escombros da residência soterrada em Petrópolis, na Região Serrana do nosso estado. As informações, também repetidas, são semelhantes: no deslizamento da encosta, morreram o irmão de Ayla (Lukas, 9 anos), seus pais (Beatriz, 25, e Douglas, 24) e a sua avó materna (Maria Lúcia, 66).
É a tragédia mais recente provocada pela chuva em Petrópolis, onde em 2022 morreram mais de 130 pessoas, mas o cenário – o bairro Alto Independência – é antigo, repetido, e me leva ao passado. Em dezembro de 1981, eu era estagiário do Jornal do Brasil, envolvido na cobertura dos temporais que causaram dezenas de mortos pelo estado: os colegas Paulo Motta, repórter, e Carlos Mesquita, fotógrafo, voltaram à redação depois de passarem a madrugada em Petrópolis, a cidade mais atingida pela chuva. Na sexta-feira, 04/12/1981, a foto no alto da capa do JB mostrava o jovem Jamil Luminato, 20 anos, caminhando pela rua do Independência, com um bebê morto nos braços, que ele ainda tinha esperança de estar vivo.
Tragédia repetida, cenário repetido: as encostas do Alto Independência foram palco de novos deslizamentos ano após ano até reencontrar as manchetes em março de 2013, levadas pelo mesmo personagem. Pouco mais de 31 anos depois de estar no alto da primeira página impressa do JB, Jamil estava na capa dos sites de notícias, no sepultamento da filha, Drucilane (31 anos) e dos netos Rodrigo (4) e João Vitor (2), soterrados após deslizamento no Alto Independência. O pedreiro continuava morando na mesma encosta onde vivia com os pais e 10 de seus irmãos em 1981. No Alto Independência, ele casou e teve cinco filhos: em 2013, todos continuavam morando na área de risco, sob ameaça dos temporais.
A tragédia climática repetida é apenas um dos sinais do fracasso da humanidade, da sociedade desigual criada pelos seres humanos desde que se tornaram dominantes neste planeta 10 mil (20 mil? 30 mil?) anos atrás. Depois de subjugar ou extinguir milhares de outras espécies, os humanos estão dando passos largos para sua autodestruição, com a devastação do privilegiado ambiente da Terra. O fim dos tempos para os humanos no planeta está próximo, não creio que chegaremos ao próximo milênio: talvez o planeta resista; a nossa sociedade não vai. As tragédias climáticas repetem-se mas estão cada vez piores: mais intensas as chuvas, mais extremas as secas, mais altas as temperaturas, na terra e no oceano, mais incontroláveis os incêndios. E foi o domínio do fogo, uma das razões dos humanos tornarem-se dominantes na Terra, o mesmo fogo usado em todas as guerras de humanos contra humanos.
O domínio da comunicação foi outro fator decisivo para dominarmos o mundo. E também hoje é um sinal claro do caminho acelerado para o fim da aventura humana na Terra. Quatro dias preso em casa pelos temporais, muito tempo buscando notícias nas telas; suficiente para testemunhar o acúmulo gigante de desinformação, desentendimento e ignorância multiplicados pelas redes sociais e, às vezes, até por veículos de entretenimento e notícias. Difícil distinguir a cretinice da estupidez, a má-fé da burrice. Mas há uma clara maioria de seres humanos no Brasil (e na maior parte do mundo) que é ignorante – ignora a história, a ciência, os conhecimentos acumulados pela nossa espécie; que acredita num deus qualquer que garanta privilégios a si e aos seus poucos iguais; e que odeia, com ardor e convicção, os outros humanos, principalmente os diferentes e aqueles que ameaçam os privilégios assegurados por aquele deus.
Como a autodestruição parece-me inevitável, gostaria que a hecatombe climática começasse atingindo os palácios, os templos e os gabinetes. Mas basta olhar o presente para saber como é improvável esse futuro. A menina Ayla é a sobrevivente de uma família negra e pobre; era preto o bebê carregado pelo preto Jamil em 1981, achado ao lado da mãe morta no casebre destruído no Alto Independência; eram igualmente negros a filha e os netos de Jamil soterrados em 2013. Eram pretos e partos todos os moradores entrevistados pelos colegas das emissoras de TV no Alto Independência nestes quatro dias de temporais em março de 2024. Eram também quase todos negros e todos pobres os moradores das encostas desabadas em Teresópolis e dos bairros inundados na Baixada Fluminense. É racismo ambiental por mais que esperneiam os cretinos dos palácios, templos e gabinetes.
Escrevo na segunda (25/03) e a previsão é que o sol reapareça, de verdade, em algum momento do feriado prolongado. O Rio de Janeiro com sol é capaz de dissolver pessimismos: a cidade é das ruas, do samba, dos encontros, das encruzilhadas, das marés e das maresias, dos cenários privilegiados e das desigualdades escancaradas, das disputas e das harmonias. Parece até que a vida vai prevalecer. Aproveitemos porque dias piores virão.