Assim como no clássico filme de John Singleton, “Os donos da rua” (1991), as vias públicas do Rio parecem, de fato, ter proprietários. Proibições, cobranças de taxas e o controle de serviços como gás e internet, impostos pelo crime organizado, vêm se espalhando por todo o estado. Segundo especialistas, as restrições, que antes se concentravam nas favelas e áreas periféricas, agora avançam para outros bairros, aumentando o medo e a insegurança entre os moradores.
Em Olaria, na Zona Norte da capital, essas imposições já chegaram. A mais recente foi determinada por facções criminosas, que proibiram a instalação de câmeras de monitoramento nas fachadas de prédios, condomínios e residências. A ameaça é clara: quem desobedecer pode ser morto ou expulso da região. Muitos equipamentos que já estavam instalados foram removidos.
Criminosos criam taxas em condomínios
Em abril deste ano, um condomínio em Madureira, também na Zona Norte, realizou uma assembleia geral, convocada pelo síndico, para votar a cobrança de uma taxa mensal de R$ 1,8 mil a ser paga aos traficantes do Morro São José, comunidade da região. A denúncia foi feita pelos próprios moradores e está sendo investigada pela Polícia Civil.
Um morador de Madureira, que preferiu não se identificar, afirma que o medo é constante entre os vizinhos, que temem que essa prática se estenda a outros prédios. Segundo ele, é um “absurdo” ser obrigado a pagar uma taxa ao crime para poder viver em paz em sua própria residência.
‘É pagar ou viver com medo’
“O absurdo é que, além das despesas normais do condomínio, as pessoas são forçadas a pagar uma taxa extra para o crime, supostamente para garantir segurança ou simplesmente para que tudo funcione sem problemas. Isso pesa muito no bolso, principalmente de quem já luta para pagar aluguel, condomínio e contas. E o pior é que ninguém pode se recusar, porque as ameaças são reais. É pagar ou viver com medo”, afirmou.
Situação semelhante ocorre em um condomínio no bairro de Chaperó, em Itaguaí, na Baixada Fluminense. Moradores denunciam extorsões praticadas por criminosos ligados à milícia. Segundo relatos, estão sendo obrigados a pagar uma taxa mensal de R$ 500, supostamente para garantir a “segurança” do condomínio e assegurar o fornecimento de serviços como internet e gás.
Proibição de motoristas de aplicativo
Em São João de Meriti, também na Baixada Fluminense, desde março, uma ordem do Comando Vermelho proibiu a circulação de motoristas de aplicativo nas favelas de São Mateus e Tomazinho. Muros foram pichados com avisos da proibição. Moradores relatam que os criminosos ameaçam punir qualquer motorista que desrespeite a ordem e entre nessas áreas.
Restrições semelhantes também são comuns em bairros como Praça Seca, Santa Cruz e Campo Grande, na Zona Oeste, e na Ilha do Governador, na Zona Norte. Nesses locais, criminosos instalam faixas com orientações obrigatórias: motoristas de aplicativo devem acender a luz interna do veículo, abaixar os vidros e ligar o pisca-alerta ao entrar nas comunidades.
‘Isso atrapalha a vida de todo mundo’
Segundo uma moradora de Belford Roxo, que também não quis ser identificada, essa realidade não é novidade na Baixada Fluminense. Ela relata que são poucos os lugares onde não é preciso se preocupar com a proibição de motoristas de aplicativo.
“A gente se sente isolado. Quando proíbem os motoristas de aplicativo, quem mora nas comunidades perde uma das poucas opções de transporte rápido e relativamente seguro. O transporte público nem sempre funciona bem, e ficamos sem alternativa, principalmente à noite ou em situações de emergência. Fora o risco de algum motorista que não sabe da proibição acabar entrando e sofrer uma tragédia. Isso atrapalha a vida de todo mundo que mora aqui”, lamentou.
Controle de serviços essenciais
O controle também se estende à oferta de internet, gás e outros serviços essenciais. Provedores que não possuem autorização dos traficantes estão sendo impedidos de operar em várias regiões. Funcionários de empresas de telecomunicações, por exemplo, relatam casos de ameaças e agressões quando tentam prestar serviços em áreas dominadas por facções.
É o que conta um morador de São Gonçalo, que afirma estar passando pelo mesmo problema. Segundo ele, que também não quis se identificar, é como se os moradores estivessem “reféns até na comunicação”.
‘Não podemos escolher a operadora’
“Hoje em dia, quase tudo depende de internet, mas aqui só funciona se for da empresa que eles autorizam. Se dá problema, não tem pra quem reclamar. Não podemos escolher a operadora, nem buscar um serviço melhor. Já aconteceu de ficarmos dias sem sinal, sem conseguir trabalhar, estudar ou fazer qualquer coisa online. É como se estivéssemos reféns até na comunicação”, relatou.
O que dizem os especialistas
De acordo com o professor Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF), essas proibições fazem parte do que os especialistas chamam de controle territorial armado, que se organiza em três dimensões: extração de recursos econômicos, modificação de comportamentos (por meio de imposições) e uso, potencial ou efetivo, da força.
“Essa é uma dimensão fundamental do controle territorial armado. Essas proibições podem ocorrer em graus variados e de maneiras diversas, a depender dos locais e também do grupo armado que exerce esse controle. Então, varia conforme o grupo — se é a ADA, o TCP, o Comando Vermelho ou as milícias — e também de acordo com os territórios. Por exemplo, se estão posicionados mais próximos de zonas mais abastadas ou mais periféricas, em diferentes cidades da região metropolitana, considerando seus contextos específicos”, explicou Hirata.
Proibições estão se expandindo no Rio
Para o professor, o controle territorial armado é exercido de formas diferentes, tanto em relação ao tipo de grupo criminoso quanto à localização do espaço dominado. De acordo com o sociólogo, essas proibições têm se expandido não só em favelas, mas também em outras áreas — uma prática historicamente associada às milícias no Rio, embora hoje não seja exclusiva desse grupo.
“As milícias atuam em sub-bairros, em locais que não são considerados favelas, já há bastante tempo. Elas predominam nesse tipo de formação urbana, diferentemente do tráfico de drogas, que, via de regra, está muito mais associado à atuação em favelas. Claro que, hoje em dia, as facções do tráfico e as próprias milícias têm tido atuações mais próximas do que a distância original entre esses grupos indicava no momento da formação das milícias. Ainda assim, mantêm-se diferenças importantes. Esse tipo de proibição nas ruas, na chamada “pista”, está fortemente associado ao fenômeno das milícias”, afirmou.
‘Polícia tem sobrecarga de trabalho’
Já o antropólogo Paulo Storani, capitão veterano do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), apresenta uma visão diferente sobre o problema. Ele afirma que, atualmente, as forças de segurança têm atuado para combater essas práticas, mas a Polícia Militar e a Polícia Civil estão sobrecarregadas diante do tamanho da demanda.
“A polícia já tem uma sobrecarga de trabalho. Não consegue atender às demandas da própria sociedade em razão do volume de crimes que são cometidos, com um efetivo que não dá conta de acompanhar. Então, embora o uso de tecnologia seja muito importante, ela ainda não consegue acompanhar as modalidades criminosas na velocidade em que elas surgem. A polícia está sempre correndo atrás do problema”, afirmou.
‘Uma prisão, para acontecer, se torna um processo muito longo’
Apesar disso, Storani destaca que ainda percebe uma atuação efetiva da Polícia Militar no combate à criminalidade. Já a Polícia Civil, embora limitada pelo baixo efetivo, ainda consegue realizar investigações e efetuar prisões, embora não com a efetividade desejada. Para ele, esse esforço não é suficiente, principalmente por conta do funcionamento do sistema judiciário brasileiro.
“O sistema jurídico do Brasil, por conta da criação de várias instâncias — o que é importante para evitar erros —, parece que, nesse temor de errar, criou uma série de direitos e oportunidades para quem comete delito. Uma prisão, para acontecer, se torna um processo muito longo, muito complexo. E, ao longo desse processo, é muito fácil o criminoso, por exemplo, se evadir. Aí, vira mais um foragido que a polícia precisa buscar e acaba entrando no rol de procurados das instituições policiais”, explicou.
O que dizem as autoridades
Em nota oficial, a Polícia Militar informou que “os batalhões seguem intensificando o policiamento ostensivo em suas áreas de atuação, com o emprego de radiopatrulhas, motopatrulhas, e reforço do efetivo por meio do Regime Adicional de Serviço (RAS)”.
“A Polícia Militar reforça a importância da participação da população, que pode colaborar com informações através do Disque Denúncia (21) 2253-1177 ou, em casos emergenciais, pelo telefone ou aplicativo 190”, completou o órgão em comunicado.
Polícia Civil investiga o crime organizado
A Polícia Civil também se posicionou e informou, por meio de nota, que suas delegacias especializadas e distritais investigam a ação de grupos criminosos em todo o estado. Segundo o órgão, “agentes realizam diligências para identificar e responsabilizar criminalmente todos os envolvidos em facções e narcomilícias”.
“A Instituição atua ainda de forma integrada com a Polícia Militar, responsável pelo policiamento ostensivo, para coibir práticas criminosas na região. A Polícia Civil orienta, ainda, que todos os casos sejam registrados para que possam ser investigados de forma individual e para que os autores sejam identificados e responsabilizados criminalmente. As denúncias também podem ser feitas por meio do Disque Denúncia. O anonimato é garantido”, finalizou a Polícia Civil.