Desde a adolescência, sei que João Cândido é um herói da pátria brasileira. Aprendi ao saber da história por trás da letra de “O Mestre-Sala dos Mares”, maravilhoso samba de Aldir Blanc e João Bosco, ainda mais maravilhoso na voz de Elis Regina. Conheci a história do Almirante Negro, nome original do samba, atraído pela curiosidade de entender porque a censura da ditadura militar vetara a música e obrigara os autores a fazer mudanças para driblar os censores. Passados quase 50 anos, a história heroica de João Cândido volta a ter destaque porque a elite militar – personificada pelo comandante da Marinha – demonstra, mais uma vez, sua ojeriza ao Almirante Negro, como ficou conhecido o marinheiro que liderou a Revolta da Chibata, em 1910, atacando a inscrição de João Cândido no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria. A rebelião, mais de 20 anos após a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República, tinha como objetivo principal o fim dos castigos físicos, com chibatadas típicas da escravidão, impostos pelos oficiais aos marinheiros – aos marinheiros negros, naturalmente.
A Marinha do Brasil parece não ter, no Século 21, vergonha de manchar sua farda branca, como não tinha um século atrás quando ainda usava a chibata para punir os marinheiros. Os castigos físicos já estavam formalmente banidos da Armada (antigo nome da Marinha) por decreto assinado pelo Marechal Deodoro da Fonseca, primeiro presidente, um dia após a proclamação da República. “Fica abolido na Armada o castigo corporal”, estabelecia o artigo 2º do decreto nº 3 de 16/11/1889 (o artigo 1º reduzia a nove anos o tempo de serviço para os marinheiros). Ainda assim, em 1910, a chibata ainda descia sobre as costas dos praças. No dia 22 de novembro, o experiente João Cândido Felisberto, com mais de 15 anos de Marinha, liderou a revolta contra os castigos, um dia após um marinheiro ter recebido 250 chibatadas diante da tropa perfilada. Os rebelados assumiram o comando de quatro navios de guerra — Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Deodoro — ancorados na Baía de Guanabara e ameaçaram bombardear o Rio, se suas reivindicações (fim das chibatadas, melhores condições de trabalho e de soldo e anistia) fossem atendidas.
A Revolta da Chibata durou cinco dias: foi encerrada com o atendimento das reivindicações. Mas, por pressão dos oficiais da Marinha, a anistia foi suspensa e os marinheiros punidos: dos mais de 2300 revoltosos, 1.216 foram expulsos da Marinha; 600 foram presos. A Marinha embarcou 105 em direção à Amazônia para trabalhos forçados na produção da borracha; 14 foram fuzilados durante a viagem. João Cândido e outros 17 marinheiros ficaram presos na fortaleza da Ilha das Cobras, no litoral do Rio: só dois sobreviveram às condições insalubres da cadeia. João foi mandado para um manicômio e, depois, de volta à prisão: julgado, foi absolvido mas, ainda assim, expulso da Marinha. Chegou a trabalhar na Marinha Mercante, mas oficiais ameaçavam seus empregadores: acabou sendo estivador e pescador. Morreu pobre, aos 89 anos, em 1969.
O Almirante Negro – como João, por sua liderança, foi chamado pela imprensa da época, à frente o jornalista João do Rio, o cronista mais popular da cidade – e a Revolta da Chibata nunca deixaram de assombrar a Marinha. Na década de 1930, o jornalista Apparício Torelly, o Barão de Itararé, foi retirado de seu carro por oficiais da Marinha, que exigiram que ele parasse de publicar um folhetim sobre a rebelião dos marinheiros em seu jornal. O livro A Revolta da Chibata, publicado em 1959 e baseado, principalmente, nos relatos de João Cândido, foi recolhido após o golpe militar de 1964. Seu autor, o jornalista e escritor Edmar Morel, teve seus direitos políticos cassados e foi demitido da Rede Ferroviária Federal, de onde era funcionário.
O samba de Bosco e Blanc não podia mesmo passar pela censura da ditadura militar. Foi preciso trocar a letra. “Marinheiro” virou “feiticeiro” em duas estrofes, “negros” foram substituídos por “santos”. A estrofe mais modificada era assim: “Rubras cascatas jorravam das costas / dos negros pelas pontas das chibatas / Inundando o coração de toda tripulação / Que a exemplo do marinheiro gritava então”. E foi gravada assim: “Rubras cascatas jorravam das costas / dos santos entre cantos e chibatas / Inundando o coração do pessoal do porão / Que a exemplo do feiticeiro gritava então”. E Almirante Negro virou navegante negro. Os censores e a Marinha ficaram satisfeitos, mas muita gente ficou sabendo da censura, da nova perseguição a João Cândido, dos detalhes da Revolta da Chibata.
Essa mancha na farda da força naval não é a única. Durante a ditadura, o Cenimar (Centro de Informações da Marinha) teve ativa participação na repressão aos opositores do regime e montou um centro de tortura na Base Naval da Ilha das Flores, dentro do Arsenal de Marinha: Antônio Rogério da Silveira, Iná de Souza Medeiros, Marta Mota Lima Alvarez e Marijane Vieira Lisboa foram alguns dos presos políticos que denunciaram terem sofrido torturas – pau de arara, choques elétricos – na Ilha das Flores. Presidente da UNE em 1967, Jean Marc von der Weid foi preso e torturado pelo Cenimar antes de sair do país exilado. Seu sucessor, Honestino Guimarães, desapareceu após ser preso por agentes do serviço da Marinha em 1973; o economista Ruy Mauro Marini também contou ter sido torturado no Cenimar.
Mais recentemente, a farda branca foi manchada, mais uma vez, com a revelação de que o almirante Almir Garnier Santos, comandante da Marinha nos estertores do Governo Bolsonaro, foi o único, entre as três forças, a colocar sua tropa à disposição para o plano golpista.
Com tantos antecedentes, não podemos considerar surpresa a manifestação, por escrito, do novo comandante da Marinha, o almirante (branco) Marcos Olsen, contra a inscrição de João Cândido no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria. “Episódio constitui para a Marinha do Brasil (MB), fato opróbio (vergonhoso) da história, cujo estopim se deu pela atuação violenta de abjetos marinheiros que, fendendo hierarquia e disciplina, utilizaram equipamentos militares para chantagear a nação”, escreveu Olson em carta à Comissão de Cultura da Câmara que, analisa projeto, já aprovado no Senado, para incluir o Almirante Negro no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria, um democrático memorial para preservação da memória nacional.
Estão inscritos no Livro de Aço – assim conhecido por serem de aço as páginas da escultura que o representa no Panteão da Pátria, na Praça dos Três Poderes, em Brasília – nomes como os dos ex-presidentes Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek e dos escritores Machado de Assis e Castro Alves. Convivem ali heróis da Marinha, como os almirantes Tamandaré e Barroso, com rebeldes e revolucionários: líderes da Insurreição Pernambucana (do século XVII) e da Revolução Constitucionalista (do século XX), Zumbi dos Palmares, Antônio Conselheiro, Tiradentes, todos contestadores da ordem vigente, todos dispostos a pegar em armas pelos ideais. Como João Cândido, o Almirante Negro, o líder da Revolta da Chibata.
Não darei espaço aqui para os disparates autoritários de Olsen como também não farei julgamentos sobre acusações de racismo imputadas agora ao comandante da Marinha. Prefiro repetir trecho da petição do Ministério Público Federal ao Ministério de Direitos Humanos, pedindo o reconhecimento formal da perseguição a João Cândido, sua consideração como anistiado político, e a devida reparação à família. “João Cândido teve seus direitos violados e foi expulso da Marinha. A anistia não valeu, ele foi traído, e, na sequência, o Estado brasileiro não parou de persegui-lo. A gente sustenta isso nesses pareceres, que há uma perseguição de sua memória. A resistência da Marinha à consagração dele como herói nacional é só mais uma prova disso”, afirma o procurador Júlio José Araújo Junior na petição.
Talvez o almirante Olsen não consiga compreender mas João Cândido já é considerado um herói brasileiro: tem estátua no Centro, às margens da Baía de Guanabara bem perto das instalações da Marinha; foi enredo de escola de samba, faz parte dos currículos escolares, inspirou a obra-prima de Aldir Blanc e João Bosco, foi cantado por Elis. A inscrição de seu nome no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria é só mais um reconhecimento – e melhor seria se a Marinha parasse de manchar sua farda branca.
Publicado originalmente no #Colabora – Jornalismo Sustentável