No Rio de Janeiro, muros e paredes se transformaram em telas que narram as lutas, conquistas e legados da cultura afro-brasileira. Com grafites, murais e pinturas, a arte urbana se consolidou como um instrumento essencial para preservar a memória da população negra no município, ao mesmo tempo em que colore e ressignifica o espaço urbano.
Um dos principais responsáveis por essa transformação é o Projeto NegroMuro, criado em 2018. A iniciativa, idealizada pelo muralista Cazé e pelo pesquisador Pedro Rajão, tem como objetivo revitalizar espaços públicos, homenageando figuras históricas negras e promovendo a conscientização sobre a identidade e cultura afro-brasileira.
“A motivação por trás está diretamente ligada ao combate ao apagamento da história da população negra. O objetivo principal é enfrentar esse processo de esquecimento histórico e destacar a importância da valorização da identidade e da imagem negra. Acredito que isso é fundamental para promover a autoidentificação e criar exemplos positivos. Nossos monumentos públicos devem ser reflexos das memórias que queremos exaltar”, explica o produtor Pedro Rajão.
Artes atraem a atenção na cidade

As obras do NegroMuro reúnem muitos fãs pela cidade. A professora Jeniffer Oliveira, de 27 anos, que passa frequentemente pelos murais, compartilha sua visão sobre os trabalhos.
“Eu acho muito importante, porque elas trazem conscientização. Algumas transmitem mensagens relevantes sobre nosso dia a dia, sobre a sociedade em si. E, além disso, deixam a cidade mais bonita, bem colorida, agradável aos olhos”, afirma.
Já a secretária Beatriz Castro, de 31 anos, vê a arte urbana no Rio como uma forma de alívio para a violência que marca as ruas da cidade.
“Eu tenho muitos amigos que fazem grafites e outros tipos de arte, e acho muito importante. A cidade já é cinza e vemos muita violência no Rio de Janeiro, então essas obras ajudam a acalmar os ânimos. São lindas, trazem um alento para quem passa por aqui”, diz Beatriz.

Mais de 60 murais pela cidade
Desde 2018, o projeto já homenageou 69 figuras negras, entre elas Abdias do Nascimento, Cartola, Carolina de Jesus, Djavan, Marielle Franco e Martinho da Vila. Na Região Central do Rio, dois murais, em especial, chamam atenção: um em homenagem a Luiz Gama, na Rua da Constituição, 51, e outro a Ruth de Souza, no anexo do Theatro Municipal.
Luiz Gama

Luiz Gonzaga Pinto Gama foi um advogado, escritor e abolicionista, reconhecido por sua luta pela liberdade dos negros no Brasil. Nascido em Salvador, na Bahia, ele foi alforriado aos 17 anos e, autodidata, adquiriu conhecimentos jurídicos que o ajudaram a libertar centenas de escravizados. Apesar de ser baiano, Luiz Gama teve uma relação profunda com o Rio ao longo de sua vida.
O mural de Gama, pintado por Cazé, destaca sua luta pela liberdade e faz referência à sua mãe, Luísa Mahin, uma figura quase mítica da história negra brasileira, descrita por Gama como “uma negra, africana livre, da Costa da Mina”. A homenagem, de acordo com os artistas, celebra a persistente luta de Gama pela liberdade, que permanece viva nas ruas da cidade.
Ruth de Souza

Outro mural de grande relevância é o que homenageia Ruth de Souza, pioneira no teatro, cinema e televisão do Brasil. Localizado no anexo do Theatro Municipal do Rio, o mural celebra a trajetória de Ruth, que foi a primeira atriz negra a se apresentar no palco principal do teatro. Em 1954, a artista também fez história ao se tornar a primeira brasileira indicada a um prêmio internacional de cinema, concorrendo a melhor atriz no Festival de Veneza por sua atuação em “Sinhá Moça”.
O tamanho da obra reflete a importância de Ruth para as artes brasileiras e para a quebra de barreiras raciais no cenário cultural. A homenagem, idealizada por Cazé e Rajão, simboliza, segundos eles, a reverência a uma mulher que abriu portas para futuras gerações de artistas negras, desafiando os padrões racistas da sociedade de sua época.
Desafios do projeto
Apesar do impacto cultural e social do projeto, Pedro Rajão destaca que os principais desafios são a manutenção e a captação de recursos para continuar as obras. O financiamento vem de diversas fontes, incluindo parcerias com a Secretaria de Educação e Cultura, além de iniciativas privadas e crowdfunding.
“Os desafios estão na manutenção do projeto. Contamos com iniciativas privadas, como o financiamento do mural do Morro do Salgueiro por meio de NFTs e o apoio de escritórios de advocacia para o mural do Morro do Lins. São fontes variadas e um trabalho contínuo de captação e diálogo. No caso do mural do Morro do Lins, quinze escritórios de advocacia contribuíram, cada um com uma cota de patrocínio”, explica Rajão.
Os próximos passos do projeto incluem a reforma do mural em homenagem a Antônio Pitanga e à Revolta dos Malês. O NegroMuro já ultrapassou as fronteiras da capital fluminense, com murais em São Paulo, Niterói e na Baixada Fluminense, e tem planos de expandir para outros países da América Latina e até para a África, com o objetivo de contar a história negra em diferentes contextos culturais.