“Não havia mulheres nas provas dos festivais esportivos promovidos em Olímpia, na Grécia Antiga, e interrompidos três séculos antes de Cristo, como também não havia atletas do sexo feminino quando os Jogos Olímpicos foram retomados em Atenas, em 1896”. Assim começa meu livro ‘Atleta, substantivo feminino’, que conta a jornada de 20 atletas olímpicas brasileiras, da pioneira Maria Lenk às medalhistas no retorno dos Jogos à capital grega em 2004 (escrevi o livro em 2006): as primeiras medalhas de mulheres brasileiras só vieram nos Jogos Olímpicos de Atlanta 1996. A história dessas 20 mulheres é reveladora das dificuldades da vida de atleta e de como essas dificuldades se multiplicam com o fator gênero. Por isso, o Brasil ter mais mulheres do que homens em sua delegação olímpica em Paris 2024 é um marco histórico – com um enorme significado para o esporte brasileiro e para gerações de substantivas atletas.
A nadadora Maria Lenk, primeira mulher brasileira e sul-americana a disputar os Jogos Olímpicos, em Los Angeles 1932, quando era a única mulher em uma delegação de 67 atletas do Brasil, escreveu seu nome na história esportiva do país e tornou-se, por este pioneirismo, razoavelmente conhecida até mesmo fora do ambiente do esporte. Mas a situação de Maria Lenk – única mulher em uma delegação olímpica do Brasil – repetiu-se nos Jogos de Helsinki 1952, com Wanda dos Santos, do atletismo; em Melbourne 1956, com Mary Dalva Proença, dos saltos ornamentais; em Roma 1960, novamente com Wanda; e em Tóquio 1964, com Aída dos Santos que ficou em quarto lugar na prova do salto em altura – até 1996, era o melhor resultado de uma mulher brasileira nos Jogos Olímpicos.
O feito de Aída fica ainda mais significativo no cenário vivido pelos atletas olímpicos brasileiros 60 ou 70 anos atrás. O bicampeão olímpico (1952 e 1956) Adhemar Ferreira da Silva (que bateu quatro vezes o recorde mundial do salto triplo) se sustentava com o modesto salário de servidor da Prefeitura de São Paulo, obrigado a bater ponto e com pouco tempo para treinar. Aída, filha de pedreiro e lavadeira, moradora do Morro do Arroz, em Niterói, chegou a apanhar do pai por querer ser atleta; ouviu insultos racistas ao disputar provas de atletismo. Precisou fazer o índice olímpico quatro vezes para conseguir a vaga em Tóquio – os dirigentes não queriam o “estorvo” de levar uma mulher numa delegação só de homens. Viajou sem técnico e sem material adequado para competir; foi praticamente abandonada pelos dirigentes no Japão. Atleta, mulher, brasileira e negra: o sarrafo que Aída dos Santos superou em 1964 era muito alto (no atletismo, chama-se sarrafo aquela barra que os atletas dos saltos em altura e com vara precisam superar sem derrubar).
Neste domingo, Larissa Pimenta ganhou uma medalha de bronze no judô – nas manchetes brasileiras, o destaque para a marca de cinco Jogos Olímpicos consecutivos com atletas da equipe feminina no pódio. Faltou lembrar: até 1979, era proibido, por decreto (decreto dos tempos do Estado Novo regulamentado pela ditadura em 1965), competições de luta entre mulheres. O livro de 2006 tem a história de Soraia André, nascida no bairro pobre da Zona Norte de São Paulo, judoca do Brasil nos Jogos Olímpicos de 1988 e 1992, os primeiros com equipes femininas. Mesmo enfrentando os desmandos dos dirigentes da Federação de Judô, ganhou três medalhas nos Jogos Pan-Americanos (ouro em Indianápolis 1987) e acumulou pódios em competições continentais, enquanto dava aulas de judô e estudava – formou-se em Educação Física, ainda atleta, e tem graduação em Psicologia e pós-graduação em Psicopedagogia, Direito Educacional, Psicologia do Esporte.
Se tivesse feito uma reedição do livro depois dos Jogos Olímpicos do Rio 2016, talvez tivesse acrescentado a história da campeã olímpica Rafaela Silva: negra, como Soraia, da periferia (no caso da Cidade de Deus, da Zona Oeste carioca) como Soraia, e ainda vítima do racismo ostensivo multiplicado pelas redes sociais: foi assim depois de ser campeã olímpica, foi assim agora após ser eliminada na semifinal em Paris 2024. As trajetórias das atletas olímpicas retratadas no livro mostram uma diversidade de históricos familiares – algumas nasceram na favela, outras são filhas da classe média; tem atletas filhas de fãs dos esportes e atletas que apanharam por gostar de esporte. Mas todas invariavelmente fizeram sacrifícios comuns aos atletas de alto rendimento – o que inclui dores permanentes e cicatrizes – e todas precisaram superar um sarrafo mais alto por ser mulher.
Hoje, muitos conhecem a história de Rayssa Leal, filha de pai vidraceiro e mãe caixa de mercado, que saiu de Imperatriz, no Maranhão, para ganhar duas medalhas olímpicas. Mas são poucos os que acompanham a trajetória de Bruna de Paula, bicampeã dos Jogos Pan-Americanos e artilheira da seleção brasileira de handebol nos Jogos Olímpicos de Paris 2024: na infância, colheu café com a mãe em Campestre, Mato Grosso do Sul, vendeu picolé e trabalhou como auxiliar de mecânica. Começou a jogar handebol na escola, foi morar longe da família para se dedicar ao esporte com 15 anos, ganhou fama: jogou seis anos na França e está na Hungria.
Muita gente também já sabe que a estrela Rebeca Andrade (três medalhas olímpicas em Tóquio) é filha de uma empregada doméstica, criada com seis irmãos pela mãe solo em Guarulhos, que saiu de casa aos 10 anos para se dedicar ao esporte. Mas não são tantas as pessoas que sabem das trajetórias de suas companheiras Flávia Saraiva e Lorrane dos Santos (negras como Rebeca), do time brasileiro – que chegou, em Paris 2024, pela primeira vez a final olímpica por equipes: Flavinha é filha de vendedores, moradores de Paciência, na Zona Oeste – levava duas horas de van para chegar aos locais de treino no Rio e com 11 anos foi morar longe da família no interior do estado para se dedicar a ginástica. Lorrane foi descoberta para a ginástica no circo mantido por uma ONG na Baixada Fluminense.
O livro de 2006 termina com a história da mais jovem das medalhistas em Atleta, ‘substantivo feminino’: a entrevista foi por telefone porque, aos 20 anos, ela estava na Suécia, para onde a carreira esportiva a levara. Aos 14 anos, tinha deixado a cidade natal, sozinha, para correr atrás de seu sonho. Hoje, aos 38 anos, Marta – que, literalmente, é conhecida no mundo inteiro – está na sua sexta participação olímpica (foi prata com a seleção em 2004 e 2008); a menina de Dois Riachos, no interior de Alagoas, enfrentou todo tipo de preconceito por gostar de jogar futebol (aliás, o esporte também estava proibido por aquele decreto do judô). A estrela do futebol, seis vezes eleita melhor jogadora do mundo, agora é uma porta-voz dos direitos das mulheres, como a igualdade nas premiações, e da comunidade LGBT+ e também contra o racismo e outras discriminações no esporte. São histórias que o esporte possibilita para inspirar novas histórias e iluminar também trajetórias com menos visibilidade.
Texto publicado originalmente no #Colabora – Jornalismo Sustentável