Eu ia escrever sobre um pedaço da cidade, mas fui arrebatado pelo filme do Moa, que é sobre o Rio de Janeiro inteiro, sobre o Rio de Janeiro do samba, das rodas, das ruas, do carnaval, dos botequins, da Zona Norte e da Zona Sul. O filme do Moa é o documentário “Moacyr Luz, o Embaixador Dessa Cidade”, que acompanha o compositor (violonista, poeta, cantor, cronista, boêmio) nas rodas de samba, nos bares, nos bairros, na feira, na Marquês de Sapucaí. Em resumo: é muito #RioéRua.
Moacyr Luz é da minha geração, três anos mais velho, nasceu em Bangu, morou no Méier, em Copacabana e na Tijuca; guardamos referências semelhantes do Rio de Janeiro e até, descubro no filme, temos saudades em comum do que não vivemos: muitas vezes, imagino o Bar Brahma e seu chope famoso, na Galeria Cruzeiro, que foi demolida para dar lugar ao Edifício Avenida Central. Nos meus oito anos de Bahia, muitas vezes, muitas mesmo, me peguei cantarolando “Saudades da Guanabara”, um hino dos cariocas. “Brasil, tira as flechas do meu padroeiro / que São Sebastião do Rio de Janeiro / Ainda pode se salvar”.
O documentário é praticamente uma conversa de botequim com o Moa, com histórias contadas pelo próprio, por sua mãe, Irene, pelos amigos – Zeca Pagodinho e Teresa Cristina talvez sejam os mais famosos. Faz sentido que tenha esse espírito de boteco porque Moacyr Luz diz, logo no começo, que gosta do Rio de Janeiro pelo bar, pelo Cristo Redentor e pelas pessoas. São, portanto, personagens do documentário os proprietários de botequins Antônio Rodrigues, da rede carioca Belmonte e muitos outros, João Paulo Campos, do Adonis, Ricardo Garrido, do paulistano Pirajá, e Gilberto Turibis, do igualmente paulistano Bar do Giba, em Moema (o mineiro Giba partiu para gerenciar outros balcões em janeiro de 2025). E, mais importante, aparecem ainda no documentário Alfredinho e o Bip-Bip e – no canto de tela de um filme antigo, possivelmente em super-8 – a Dona Maria, Maria Ramos, proprietária do Bar da Dona Maria (ou Bar Brotinho, na junta comercial), na Muda, na rua onde moraram, no mesmo prédio, Moacyr Luz e Aldir Blanc
As crônicas, às vezes, colocam o autor numa encruzilhada se deve voltar um pouco ou pegar o gancho para ir adiante. Retorno. A São Paulo. Porque o documentário, dirigido por Tarsilla Alves, sobre o carioquíssimo Moacyr Luz começa na capital paulista. Mas é isso: Moa é o embaixador dessa cidade e foi o responsável por, a partir do Pirajá, de seu compadre Garrido, ter espalhado o samba carioca por São Paulo – e um tipo de botequim carioca pelas esquinas paulistanas. Moacyr Luz, aliás, é autor de “Pirajá, uma esquina carioca” – livro com “intervenções” do agora imortal Ruy Castro e ilustrações de Jaguar.
O documentário acompanha uma semana inventada – mas que poderia ser real – de Moacyr Luz, que começa com um “Domingo paulistano” com a apresentação do Samba do Trabalhador no Pirajá. Segue com uma “Segunda-feira das Almas” (“Segunda-feira é das Almas / é bom também de cantar / tem uma vela pro santo / e outra pra vadiar”) – para falar do Clube Renascença onde, desde o começo deste século, comanda o Samba do Trabalhador – e a emoção atropela porque, em filmagem antiga, aparece o grande Luís Carlos da Vila lá naqueles primeiros tempos na roda do Moa. E, na primeira vez que estive no Renascença para o Samba do Trabalhador, teve canja de Luís Carlos da Vila; a minha memória, muito destilada e fermentada pelos tempos como Moacyr há de entender, não tem certeza se foi naquele exato dia.

E tem uma terça dos amigos, no churrasquinho no Aterro do Flamengo, onde já estive sempre a convite de Marluci Martins, mulher do Moa e amiga das trincheiras do jornalismo. O casal mora ali em frente, perto da Baía de Guanabara, com a vista da enseada e do Pão de Açúcar. Antes o compositor vai até a estátua de Pixinguinha – no Centro do Rio, que já esteve aqui neste #RioéRua – pedir permissão para o nome do filme. “O embaixador dessa cidade / Meu Deus do céu mais que saudade que dá / Do velho Pixinguinha” diz a letra de “Som de Prata”, de Moa e Paulo César Pinheiro, que inspirou o título do documentário.
E tem quarta da música, quinta dos parceiros, sexta da feira – talvez eu esteja misturando; a memória, a emoção, etc… E aparecem Sereno (Vida da minha vida / O vento me derrubou / A alma desprotegida / No peito de um sonhador), Zeca Pagodinho, Maria Bethânia, Fafá de Belém, Leila Pinheiro. Augusto Martins, acompanhado pelos violões de Carlinhos Sete Cordas e do próprio Moa, levando a maravilhosa Cavaleiro das Marés (Quando o velho pescador tombou / Do pontão da proa / Todo mundo veio e arrodeou a canoa / A espuma do mar beijou-lhe os pés) de Luz e Paulo César Pinheiro, que eu nunca tinha escutado.
É um filme carioca e, por isso, acaba num fim de semana de samba e carnaval. Um documentário carioca sobre o carioca Moa, onde no escuro do centenário Cinema Odeon, na pré-estreia para a qual fui convidado pela amiga Marluci, vejo nas cenas do “Embaixador dessa Cidade” cariocas (nem todos nascidos aqui) que costumo encontrar pelas ruas do Rio: o Luizinho dos Drinks (Luiz Mandarino), o violonista Tiago Prata, o colega jornalista (e autor do roteiro) Hugo Sukman, o cantor Chico Alves.

É um filme para rir das tiradas do Moa: “O pessoal diz que cada torresmo te rouba 15 minutos de vida. Se for assim, eu devo ter morrido em 2014” – o compositor, mesmo em tratamento para o Mal de Parkinson, não perde o humor. “O pessoal vai lá em casa come pé de porco, rabada, mocotó. E depois a culpa é da bebida”, reflete Moacyr Luz que, por conta das medicações, não bebe como antes (em entrevista a Silvio Essinger, em 2024, disse que, antes “bebia industrialmente”, mas agora bebe como “pequeno empresário”).
É um filme para chorar – eu chorei na poltrona do Odeon como o personagem principal do documentário também chora na tela quando Moysés Marques canta 4 de Maio, sua parceria com Moacyr Luz em homenagem a Aldir Blanc, levado pela covid-19 em 04/05/2020. Moacyr conheceu Aldir, letrista de clássicos em parceria com João Bosco (O Mestre Sala dos Mares, De Frente pro Crime e O Bêbado e a Equilibrista, entre tantos) e com o próprio Moa (Saudades da Guanabara, Anjo da Velha Guarda, Pra que Pedir Perdão), em 1983 – a história do encontro será melhor contado pelo compositor no documentário, que estreou na quinta (21/08). Eles moraram no mesmo prédio por 23 anos: fizeram quase 100 músicas em parceria. Faltam palavras aqui para descrever a visita de Moa a Mary, viúva de Aldir, e à biblioteca do antigo parceiro.
Eu ia escrever sobre um outro pedaço da cidade, também guiado pelos caminhos do samba, mas fui arrebatado pelo filme do Moa. E deixo aqui a letra e, depois, a música, de “4 de Maio” para celebrar as artes do carioca Moacyr Luz e do carioca Aldir Blanc.
4 de Maio (Moacyr Luz e Moyseis Marques)
Um minuto de silêncio no Maracanã
Rajadas no Salgueiro logo de manhã
Carreata nas ladeiras sobre rolimãs
Um aceno da Mangueira para as coirmãs
Chuva nas caramboleiras do Andaraí
Nuvens na Maia Lacerda nem devo rimar
Na Tijuca um vento forte ensurdecedor
Como se a Zona Norte gritasse de dor
Um gigante adormecido em São Januário
Dizem que hoje é feriado no seu calendário
No metrô de São Cristóvão para a Uruguai
Eu fundei um bloco da saudade que hoje mesmo sai
Na Garibaldi nem consigo mais passar
Na Rua dos Artistas é fácil lembrar
Jovens na Aldeia Campista exaltando o que é seu
Como num golpe de vista, a Muda emudeceu
Blitz no Jardim Zoológico do Grajaú
Todo o comércio fechado em Vila Isabel
Da Barão a pé até a estátua de Noel
Condução pro Bip Bip lá na Zona Sul
Um gigante adormecido em São Januário
Dizem que hoje é feriado no seu calendário
No metrô de São Cristóvão para a Uruguai
Eu fundei um bloco da saudade que hoje mesmo sai