Andarilho por vocação, autor de ‘Triste Fim de Policarpo Quaresma’ foi um cronista das mudanças do Rio e das desigualdades sociais e raciais da capital nos primeiros anos da República
Foi num 26 de fevereiro, 109 anos atrás, que chegou às livrarias a primeira edição de Triste Fim de Policarpo Quaresma, talvez hoje a mais festejada e conhecida obra de Lima Barreto – jornalista, cronista e romancista, com certeza. E muito carioca, talvez o mais carioca dos autores do começo do século passado, porque conheceu a cidade em todos os seus cantos, em todos os seus aspectos. “Sou um andarilho por vocação”, escreveu Lima em um de seus diários.
Essa faceta muito carioca do escritor – que nasceu em Laranjeiras, na Zona Sul, e morou no Centro e na vizinha Santa Teresa, e também no Catumbi, na Ilha do Governador, no Engenho Novo e em Todos os Santos, bairros da Zona Norte – é apenas uma das exibidas no documentário ‘Noite e Dia – Lima Barreto, Obra e Vida’, que está disponível desde o começo deste fevereiro de 2024 no CurtaOn. Mas é a que mais sobressai para este carioca do século 21 que leu as crônicas do escritor sobre o desmonte do Morro do Castelo e flana pelas referências ao Rio do começo do século passado nas páginas de “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, de “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá”, de “Policarpo Quaresma”.
As muitas fotos do Rio de Janeiro desta época ilustram os comentários sobre essa faceta do escritor. “É uma literatura que retrata a malha urbana, o avanço da estrada de ferro em direção ao subúrbio, o bota-abaixo” afirma, no documentário o professor e editor Augusto Massi. “Lima Barreto tem uma compulsão pelo caminhar. Acorda cedo para trabalhar e entregar suas crônicas. E volta tarde para o subúrbio, às vezes, andando de bar em bar até pegar o último trem. É alguém quem vive a cidade diurna e noturna”, acrescenta.
O Rio de Janeiro como “cidade espontânea”, não planejada, como define o escritor em seu livro “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá”, em trecho lido pelo jornalista e crítico literário Paulo Roberto Pires. “Lima Barreto fica como testemunha solitária dessa complexidade da cidade”, define Pires. “Há um olhar de câmera sobre a cidade, um texto cinematográfico. A obra de Lima Barreto é um painel visual do Rio de Janeiro”, acrescenta o professor, pesquisador e sociólogo Alexandre Juliete Rosa.
Afonso Henriques de Lima Barreto viveu todos os seus 41 anos no Rio de Janeiro. Filho do tipógrafo João Henriques e da professora Amália, escravos libertos, viveu seus primeiros anos em Laranjeiras, onde a mãe mantinha uma escola para meninas dentro de casa. Foi batizado na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Glória, no Largo do Machado. Amália morreu de tuberculose quando ele tinha sete anos. Para sustentar os quatro filhos, João chegou a ter três empregos e a família morou no Centro e em Santa Tereza, antes de se fixar na Ilha do Governador. O jovem Lima Barreto estudou numa escola pública, no Centro, fez o ginásio no Liceu Popular Niteroiense, voltou ao Rio para estudar na Tijuca e passou para Engenharia na Escola Politécnica, na Universidade do Brasil, no Largo de São Francisco, no Centro do Rio.
Não chegou a concluir o curso. Quando tinha 21 anos, o pai foi diagnosticado com “neurastenia” – os transtornos mentais o fizeram ser demitido. Lima Barreto, filho mais velho, abandonou a faculdade, passou em concurso para ser escriturário do Ministério da Guerra e começou a escrever para jornais. Alugou casa para família no Engenho Novo, perto do Méier: os irmãos cuidavam do pai. Lima Barreto vinha cedo de trem para o Centro: trabalhava no emprego público e começou a frequentar círculos boêmios e literário. “Ele vivia a cidade em todos os seus aspectos. Convivia com os pobres e com os esnobes, como ele chamava”, lembra Mussi, no documentário.
Foram as crônicas-reportagens sobre o “Subterrâneo do Morro do Castelo”, para o Correio da Manhã, em 1905, que começaram a chamar a atenção para seu talento literário. O desmonte do monte foi um marco na história do Rio: a cidade havia crescido em torno do Castelo, onde ficaram a primeira sede do governo, a primeira igreja, o primeiro colégio, e ele começou a ser demolido para dar lugar a uma capital mais moderna. Nesse processo, foi promovido a retirada dos pobres do Centro para os subúrbios: Lima Barreto foi testemunha, crítico e cronista desse Rio de Janeiro em mutação.
Neto de escravos, teve dificuldade para se firmar como romancista. Não encontrou, no Brasil, editora para Recordações do Escrivão Isaías Caminha, publicado para uma editora de Portugal e praticamente ignorado pela crítica literária do Rio. “Triste Fim de Policarpo Quaresma” saiu em forma de folhetim no Jornal do Commercio em 1911, igualmente ignorado pelos críticos da época. Quatro anos depois, Lima Barreto pagou do próprio bolso a primeira edição do romance, o primeiro livro do escritor editado e publicado no Brasil. Foi também Lima quem pagou pela edição brasileira de “Isaías Caminha”, em 1917.
Esse Lima Barreto radicalmente carioca em sua história convive no documentário dirigido por Rodrigo Grota, com o escritor talentoso que retratava seu tempo, as contradições dos primeiros anos da República e as desigualdades de sua época; com o intelectual que denunciava o racismo e a violência contra as mulheres, com o homem atormentado que sofreu com o alcoolismo e foi internado, pelo menos três vezes, por “surtos psicóticos”.
O filme mistura imagens de arquivo da cidade, entrevistas com duas dezenas de pesquisadores, historiadores e artistas, e cenas ficcionais, a partir do universo do escritor: o próprio Lima Barreto, Clara dos Anjos e Policarpo Quaresma aparecem como personagens do documentário, que está disponível no CurtaOn, streaming disponível no Prime Video (Amazon), na Claro TV+ e no site oficial da plataforma, após as primeiras exibições no Canal Curta.
O último endereço do escritor foi uma casa na rua Major Mascarenhas, em Todos os Santos. Lima Barreto foi encontrado morto pela irmã, Evangelina, no dia 1º de novembro de 1922. Tinha 41 anos. No atestado de óbito, constam “gripe torácica” (pneumonia) e “colapso cardíaco” (infarto) como causa mortis. O pai, José Henriques, morreu dois dias depois; os dois foram enterrados na mesma sepultura do cemitério São João Batista, em Botafogo.
Boa parte da obra de Lima Barreto só foi publicada três décadas após sua morte, mas cada vez é mais reverenciada e estudada. Como comenta, no documentário, o professor, pesquisador e crítico Tom Farias: “A obra de Lima Barreto é muito atual. O subúrbio do Rio de Janeiro do Lima e o subúrbio de hoje, do século 21, continuam os mesmos. Não mudou muita coisa. Isso marca bastante a atualidade do Lima como marca bastante a atualidade da desigualdade e da questão racial”.