Está calor, mas não está o mesmo calor para todo mundo. As favelas do Rio de Janeiro sentem muito mais os efeitos colaterais das altas temperaturas do que outros lugares. A pesquisadora Isabelly Damasceno, internacionalista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e comunicadora de causas, respondeu a algumas questões acerca desse fenômeno.
Por que as favelas do Rio são tão vulneráveis às ondas de calor extremas? Quais fatores, como infraestrutura e falta de serviços básicos, contribuem para que essas áreas sejam mais atingidas do que outras partes da cidade?
A ausência de políticas públicas adequadas para as favelas e periferias do Rio de Janeiro empurra constantemente esses territórios para o centro das principais vulnerabilidades da cidade, e isso vai desde desastres socioambientais à crise de segurança pública. Sem dúvidas, as ondas de calor extremas e os demais efeitos da emergência climática têm afetado toda a cidade do Rio, mas é nas favelas e periferias onde encontramos o maior déficit de saneamento básico, áreas arborizadas e de habitações adequadas para suportar o calor sem precedentes.
A questão da ausência de áreas verdes nessas localidades é um dos grandes problemas. De acordo com o Observatório do Calor da UFRJ, a diferença de temperatura entre os bairros que têm mais ou menos árvores pode chegar a 11ºC, evidenciando que as áreas que mais sofrem com as altas temperaturas são justamente as áreas menos arborizadas. Não à toa, ao sairmos da Zona Norte ou Oeste da cidade em direção ao Centro e Zona Sul do Rio, é possível perceber uma diferença abissal na sensação térmica – justamente, são essas as zonas mais arborizadas da cidade. Um verdadeiro contraste com as áreas periféricas.
Outro ponto fundamental é a estrutura das casas que comumente compõem as favelas: pouca ventilação, telhados que aquecem ainda mais o interior das habitações, saneamento básico precário e ausência de bons ventiladores ou ar-condicionado – claro, milhares de pessoas já possuem acesso ao ar-condicionado, mas outra parte significativa sequer possui mais de um ventilador em casa.
Nas favelas, a ausência de ações positivas do Estado é gritante e, em meio à emergência climática é, também, criminosa. No Rio, não vemos a pauta climática ser pensada como um problema a ser debatido urgentemente. Ao contrário: nas redes sociais, o prefeito Eduardo Paes faz memes com essa situação que, literalmente, tem afetado a saúde de milhares de pessoas com pouco acesso a meios adequados para amenizar o calor extremo.
As favelas sempre foram o “quarto de despejo” das cidades, como demarcou a imortal Carolina de Jesus. Os cariocas favelados e periféricos têm sentido na pele como é viver nesse quarto abafado enquanto o fim do mundo já é uma realidade que arde.
O conceito de racismo ambiental é frequentemente usado para explicar a desigualdade no impacto das mudanças climáticas. Essa questão se aplica à situação atual dos moradores das favelas diante das ondas de calor do Rio?
Certamente. Não é preciso ir além, no nosso imaginário, para lembrar das ruas e dos becos das favelas cariocas completamente lotadas de lixo, com um descarte absurdamente irregular. Rocinha, Complexo do Alemão e Complexo da Penha, por exemplo, são territórios onde a coleta de lixo é um serviço que sofre com uma ausência importante do Estado. A dificuldade com o saneamento básico também é um ponto alarmante quando falamos em racismo ambiental. Se estamos acostumados a lidar com o mau cheiro, risco de doenças devido à exposição a resíduos infectados e tubulações irregulares nas favelas, nos bairros “nobres” da cidade, esse cenário é impensável. Se um bueiro transborda no Leblon, prontamente a prefeitura arca com a manutenção. Nas favelas, são os moradores que precisam dar conta dos problemas estruturais.
O exemplo do saneamento básico é importante, porque esse é um ponto de atenção com aumento da incidência das fortes chuvas. Os territórios periféricos sofrem exponencialmente com alagamentos extremos, que além de colocarem em risco seus bens materiais – como a própria habitação, também arriscam sua saúde física ao exporem seus corpos à água contaminada e ao lixo não descartado corretamente. Se, hoje, estamos falando de ondas de calor, infelizmente, nas próximas semanas também estaremos falando das chuvas extremas. E os territórios periféricos serão os primeiros a serem afetados. Essa desigualdade tem nome: racismo ambiental, cujo sintoma é a indiferença dos órgãos públicos.
Diante dos desafios que as favelas enfrentam, o que você acredita que o Estado deveria fazer de forma mais eficaz para apoiar essas comunidades? Há uma ausência de políticas públicas voltadas para a adaptação das favelas às mudanças climáticas?
Na minha opinião, o Estado não existe para apoiar as comunidades. Ele existe para tornar viável o funcionamento das cidades, estados, do país, enfim. Quando falo de viabilidade, falo também da garantia de direitos que, na esfera da cidade, cabe à prefeitura em articulação às outras esferas tomar responsabilidade sobre. Os desafios são tão imensos, que acabamos por falar em “apoio”, quando na verdade o Estado precisa garantir que a vida das pessoas esteja em segurança, e que o bem-estar esteja assegurado.
Para garantir que as pessoas que vivem em favelas e periferias sofram cada vez menos com os impactos da emergência climática, é fundamental que o Estado articule o monitoramento desses territórios de forma mais efetiva, prática e propositiva. Identificadas as principais necessidades dessas localidades, é preciso agir estruturalmente, seja para prevenir alagamentos ou para evitar que moradores passem mal de calor dentro de suas casas.
É preciso investir em políticas públicas sustentáveis e resistentes ao tempo. Não temos mais espaço para obras que durem apenas pelo período de um mandato. O solo do Rio de Janeiro não suporta 30 minutos de chuva, e essa é a expressão mais gritante de que, quando se trata de políticas de adaptação, estamos à deriva. Para as favelas, é urgente que o Estado realize um monitoramento que se comprometa com ações para além de um alarme no celular ou de uma sirene no topo do morro. É preciso ouvir os moradores, trabalhar em conjunto com instituições que estão produzindo dados sobre favela, clima e meio ambiente, e fazer jus à responsabilidade que é cuidar de uma cidade de forma equitativa.