Neste setembro de tanto fogo e fumaça, completaram-se seis anos do devastador incêndio do Museu Nacional, que transformou em cinzas quase 90% dos 20 milhões de itens guardados no Palácio de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, e levou o luto a todos os brasileiros com apreço pela ciência, pela história e pelo patrimônio cultural do país. As obras de recuperação, orçadas em quase R$ 500 milhões, estão em andamento, mas, até aqui, apenas duas empresas – a Vale e o Bradesco – coçaram os bolsos para financiar o trabalho; grande parte do dinheiro tem saído do BNDES e do orçamento do governo, inclusive de emendas parlamentares.
Mas o Museu Nacional – considerado, antes do incêndio, o maior museu de história natural da América Latina – chegou a este começo de setembro ainda precisando de R$ 95 milhões para fechar as contas de todas as obras previstas. A verba é necessária para a conclusão da reforma do palácio histórico – que foi a residência da família imperial brasileira e, desde 1892, abrigava o museu – e garantir a reabertura à visitação em abril de 2026, como está previsto.
Ao fazer o apelo por novas doações para o término da reforma, o diretor do Museu Nacional, Alexandre Kellner, lembrou que, no fim de 2023, foi incluída na Lei Rouanet – que incentiva doações para incentivo à cultura – a captação de R$ 90 milhões para o projeto de recuperação. Ou seja, já que as empresas brasileiras não se mexeram para ajudar na obra por interesse pelo patrimônio científico, histórico e cultural do país, pelo menos podem destinar parte da verba dos impostos para o Museu Nacional.
Por uma dessas coincidências da vida nacional, na mesma semana em que o andamento da recuperação mostrava a falta de apreço do nosso empresariado pelas coisas do Brasil, o governo enviava ao Congresso sua proposta de orçamento para 2025, sob críticas dos chamados “agentes econômicos” por prever aumento nas despesas a ser compensado pelo crescimento da receita com a redução do gasto tributário – que são incentivos fiscais dados a empresas, principalmente, e também a pessoas físicas.
O empresário brasileiro adora o estado e detesta pagar imposto. Por isso, seus porta-vozes no Legislativo e na mídia atacam o governo; defendem cortes na despesas – na Previdência, nos gastos sociais, no serviço público. “O problema dos gastos no Brasil não é o pobre no orçamento. São os privilégios dos ricos que precisam ser checados ponto a ponto nos gastos tributários”, disse a insuspeita ministra do Planejamento, Simone Tebet, que não pode ser chamada de esquerdista, ao apresentar a proposta orçamentária. O custo das renúncias fiscais para subsídios diversos ao empresariado nacional passa dos R$ 500 bilhões: são “os privilégios dos ricos”, que a ministra citou.
Essa discussão sobre o orçamento também envolve a desoneração da folha de pagamento – um outro benefício às empresas, inventado lá no Governo Dilma e que deveria terminar em 2021. São17 setores em que a contribuição previdenciária de 20% sobre a folha de pagamento é substituída por um percentual do faturamento. Por ano, são 20 bilhões de subsídio às empresas desses setores: confecção e vestuário; calçados; construção; call center; comunicação; obras de infraestrutura; couro; fabricação de veículos; máquinas e equipamentos; proteína animal; têxtil; tecnologia da informação; tecnologia de comunicação; projeto de circuitos integrados; transporte metroferroviário; transporte rodoviário coletivo; e transporte rodoviário de cargas. O barulho feito por essa parcela do empresariado e seus porta-vozes vem protelando o fim deste privilégio, sempre ameaçando com desemprego e desinvestimento.
Mas esta coluna é sobre a recuperação do Museu Nacional, patrimônio do Rio de Janeiro e do Brasil – portanto, é preciso repetir que nenhuma das empresas destes 17 setores ainda não deu um centavo para as obras de reforma: quem sabe, agora, com a inclusão na Lei Rouanet e a possibilidade de abatimento de imposto, elas não abrem seus cofres.
A própria história do palácio em recuperação revela a elite brasileira. A mansão foi um presente para a família real portuguesa, em 1808, de um comerciante de escravos com outros negócios também facilitados pela sua proximidade com a corte portuguesa. O Império do Brasil – governado por Pedro I e Pedro II, moradores do palacete – foi sustentado sempre pelo latifúndio e pela mão de obra escrava. Boa parte da elite do segundo reinado só aderiu à causa republicana e apoiou o golpe que destronou Pedro II por sua insatisfação com a abolição da escravatura.
Mas o Museu Nacional vive e o Palácio São Cristóvão está na fase final de recuperação. Em área próximo, dentro da Quinta da Boa Vista, acaba de ser inaugurada a Estação Museu Nacional, espaço permanente para contato de estudantes com o acervo da instituição: fósseis, representação de dinossauros, espécies de pequenos animais, borboletas, artigos indígenas, símbolos do folclore e da cultura brasileira e itens do Egito Antigo. A Estação Museu Nacional – que tem patrocínio da Rede D’Or – reúne doações recebidas depois do incêndio e itens recuperados, como o Amuleto da Cantora de Amon, sacerdotisa que viveu há mais de 2,7 mil anos onde hoje é a cidade egípcia de Luxor.
A trajetória de recuperação não foi fácil. Logo depois do incêndio, ainda em setembro de 2018, um certo candidato a presidente comentou sobre a destruição do acerto do Museu Nacional. “E daí? Já está feito. Já pegou fogo. Quer que faça o quê? Meu nome é Messias, mas não tenho como fazer milagres”. Em 2021, chegou a haver um movimento no governo para desalojar o museu e transformar o palácio no Rio de Janeiro em outro espaço dedicado à família real brasileira – já há um Museu Imperial em Petrópolis. As palavras do professor Darcy Ribeiro, para quem o país tem “uma elite patronal e patricial, notoriamente corrupta, irresponsável e infecunda”, não devem ser esquecidas: “o Brasil tem uma classe dominante ranzinza, azeda, medíocre, cobiçosa, que não deixa o país ir pra frente”.
Mas o Museu Nacional nunca parou mesmo após o incêndio: seus pesquisadores continuaram a trabalhar, pesquisas avançaram, alunos apresentaram duas dissertações e teses. A recuperação do acervo e do prédio progrediu com recursos do BNDES, do orçamento público e das duas empresas. As intervenções de reconstrução, iniciadas ainda em 2018, começaram pelas fachadas, coberturas e esquadrias. Com esta fase concluída, a reforma da área interna – com o projeto já aprovado pelo Iphan – deve começar ainda este ano. Agora é torcer para que os tais “agentes econômicos” – especialmente aqueles beneficiados pelos bilhões das renúncias fiscais – apareçam com os milhões que faltam para o Museu Nacional reabrir.
Texto publicado originalmente no #Colabora – Jornalismo Sustentável