Nas conversas entre amigos não é incomum cada um descrever a primeira lembrança da sua vida. Muitos se lembram de fatos ocorridos aos 2 ou 3 anos de idade. Eu, que nunca fui precoce em nada, só tenho a minha primeira recordação de quando já estava com 6 anos. Lembro com enorme nitidez da tarde de 16 de julho de 1950, dia inesquecível para todos os brasileiros.
Copa do Mundo de 1950. O Brasil todo parado, concentrado, pronto para comemorar a mais do que certa vitória sobre o Uruguai e, pela primeira vez, sagrar-se campeão mundial de futebol.
Impossível duvidar de nossos craques: Barbosa, Augusto e Juvenal. Rui, Danilo e Bigode. Friaça, Ademir, Baltazar, Zizinho e Chico. Já eram considerados campeões há vários dias pela imprensa especializada e pelo povo em geral. Como duvidar da nossa seleção comparando-a com a equipe do Uruguai? Afinal, a Celeste Olímpica tinha passado às duras penas pela Suécia, vencendo por um apertado 3×2, enquanto o Brasil enfiara um memorável 7×1 naqueles branquelos da Escandinávia. O Uruguai sofrera para empatar em 2×2 com a Espanha e o nosso escrete goleara a mesma Espanha por 6×1, na inesquecível e mais bonita tarde da história do Maracanã, quando quase 200 mil ensandecidos torcedores cantaram, em uníssono, espontaneamente, sem nenhum acordo ou ensaio prévio, a marchinha carnavalesca “Touradas de Madri”, de Braguinha e Alberto Ribeiro. As arquibancadas trepidavam com os dois shows simultâneos: os nossos craques fazendo gols no campo, e a multidão cantando:
“Eu fui às touradas de Madri,
Parati bum, bum, bum,
Parati bum, bum, bum,
E quase não volto mais aqui,
Pra ver Peri beijar Ceci…”
Assim, olhando aqueles resultados, ficava óbvio que o Brasil venceria facilmente o Uruguai. O clima de exagerada euforia ficou bem cristalizado quando, antes do início da partida, Mendes de Moraes, então prefeito do Rio, discursou para o Maracanã inteiro, na mais pura demagogia política, tratando, não apenas os jogadores, mas todo o povo brasileiro como vencedores, heróis, já campeões mundiais. Reza a lenda que, na véspera daquela final, Paulo Machado de Carvalho, então presidente do São Paulo e depois chefe das delegações que venceriam as copas de 1958, na Suécia, e 1962, no Chile, visitou a concentração da seleção e, diante da multidão de políticos e jornalistas cortejando os jogadores, premonitoriamente, disse ao seu filho: “vamos perder”.
Obviamente que, naquela tarde fatídica, sentado em um banco da praça principal de São Bento do Una, no semiárido pernambucano, eu ainda não sabia nada disso e nem tinha a percepção da importância de tudo aquilo, fosse pelo lado esportivo, fosse pela enorme autoestima que a vitória nos traria.
Inexistindo televisão, e aparelhos de rádio sendo artigos ainda caros e pouco disponíveis, apenas uns poucos abastados poderiam ouvir em suas casas a transmissão radiofônica daquela final. Por isso, a prefeitura local instalou um alto-falante na praça principal, para retransmitir a narração do jogo, muitas vezes interrompida pelos ruídos de estática. E eu lá, vendo quase que toda a população da cidade vibrar com o gol do Brasil. Lembro bem das pessoas, em coro, gritando o nome de Friaça. Mas recordo também que, com o gol de Schiaffino, aquela algazarra foi diminuindo de intensidade e pude ouvir algumas poucas vozes alertando: “Calma gente, o empate é nosso”. Pouco depois, por conta de Ghiggia, ou de Bigode, ou de Barbosa, sei lá eu, aquelas poucas vozes também se calaram e a multidão foi se dispersando, contribuindo para o velório nacional.
Alguns homens, muitos deles embriagados, que permaneceram na praça, se abraçavam e choravam. Aquilo me chocou muito. Eu nunca tinha visto homens chorando. Hoje, acredito que a lembrança que registro como a mais longínqua, que guardo no consciente, se deve muito menos à derrota da seleção e muito mais à avassaladora compaixão que tive por aquele povo pobre e simples, sofrendo uma mistura de desânimo e decepção pelo desmoronamento de um sonho. Para eles, um sonho sem rostos, cujos personagens só conheciam nas vozes dos narradores e comentaristas das rádios do Rio e de São Paulo.
Alguns dias depois, chegou à cidade enlutada a notícia de que, no dia seguinte ao jogo, ao varrerem o Maracanã, os garis encontraram mais de 50 torcedores mortos, infartados. Depois circulou a informação que Barbosa e Bigode, acusados de falharem no gol de Ghiggia, que deu o título ao Uruguai, tinham sofrido linchamentos. Notícias nunca comprovadas, que em 1950 eram chamados de boatos. Hoje seriam mentiras, modernamente chamadas de “fake news” ou, politicamente, de liberdades de expressão.
Rio, 2025
Segundo Garrincha , esqueceram de combinar com o time adversari.lamentavel.
Estávamos retornando do Uruguai e havia um senhor, bem idoso, que era cercado por várias pessoas para selfies. Ficamos curiosos e perguntamos quem era aquele senhor “é o Gighia” nos respondeu a atendente da Cia. Aérea. Não perdemos a oportunidade e perguntamos à acompanhante dele se poderíamos tirar foto com ele, respondeu “vão, ele gosta” e lá fomos nos. Estava indo para o sorteio da copa, em Salvador.
Lembrança profundamente marcada…
Muito bom!
Excelente comentário.