Dos 24 leitores desta coluna, deve haver uns cinco que, mais jovens, talvez não saibam o que era um folhetim: avô das telenovelas, era o formato pelo qual os leitores do século 19 acompanhavam, em capítulos diários publicados nos jornais, muitas das histórias que mais tarde se tornariam obras-primas da literatura brasileira – e que teve no gênio de Machado de Assis seu mais famoso expoente.
Pois foi no endereço da casa em que morou o bruxo do Cosme Velho e dos folhetins que funcionou, por mais de 20 anos, a primeira versão do bar Assis Garrafaria. O bar, inaugurado pela empresária Elen Hartmann, foi uma referência em cerveja artesanal na cidade no começo do século 21, e teve uma trajetória tranquila de sucesso no bairro.
Até que… começou o folhetim.
Por conta de questões paralelas, vindas lá de priscas eras, o Assis Garrafaria do Cosme Velho fechou por volta de 2020, e o bar migrou definitivamente para o seu segundo endereço, em Copacabana, onde está até hoje. A casa, charmosa que só, não tem mais o emblema do endereço histórico mas guarda a beleza art-deco do prédio que um dia abrigou uma filial da Casa Sloper, a loja de departamentos mais famosa do Brasil nos anos 50.
Mas o início da história do novo Assis de Copacabana coincidiu… com a pandemia. E a clientela sumiu. E chegaram as dificuldades financeiras. E, com elas, as parcerias folhetinescas e desastradas com alguns medalhões pouco confiáveis da gastronomia popular carioca. Por duas vezes, Elen sofreu com a malandragem alheia e quase perdeu a casa.
Foram mesmo a experiência de quem já foi dona de um outro clássico carioca – as tortas Hartmann, do Leblon – e já navegou nas águas turbulentas do mundo corporativo (foi executiva da Shell por décadas, antes de se aventurar nesta cachaça chamada gastronomia) que ajudaram a empresária a seguir adiante, e reviver os bons tempos do seu Assis Garrafaria. Algo que agora começa, finalmente, a acontecer.
Depois de quase ser extinta, a casa fez um desvio de rota e virou, por algum tempo no ano passado e no começo deste ano, Assis Steak House, com o cardápio assinado pelo chef Ronaldo Canha. Agora, volta a se chamar “garrafaria” e redireciona foco para as bebidas e os petiscos de boteco novamente. Porém, neste novo cenário saem as cervejas artesanais e entram os drinques e coquetéis. Tudo reforçado por uma agenda recheada de música… e livros.
Pra começar, o belíssimo segundo andar, acessado por uma escada em caracol toda trabalhada no art deco, está sendo transformado num ambiente dedicado à coquetelaria clássica, com direito a mármores e vitrais vindos direto dos tempos da Sloper.
De volta ao primeiro andar, o salão principal e o bom espaço das mesas têm clima mais botequeiro, mas também com caminhos originais. As garrafas de cerveja que populam de alto a baixo as prateleiras aos poucos vão sendo substituídas por garrafas de destilados, colocadas à venda fechadas, como se fosse numa mercearia. “Nossa garrafaria a partir de agora vai ser de destilados nacionais”, diz Elen. O mesmo salão também abriga apresentações semanais de jazz e chorinho ao vivo, e conta com o DJ Machintal tocando seus vinis todas as sextas-feiras, diretamente no balcão.
A mudança na cozinha se mostra nos ares mais botequeiros, mas sem perder um quê de sofisticação, onde o espetinho aperitivo de barriga de porco pururucada (ou sua versão-refeição, acompanhada de baião de dois), só perde na curiosidade do público para a moela tai, feita com gengibre no óleo de gergelim tostado.
Nesta nova “garrafada”, o Assis enfim mistura comida de boteco com boa gastronomia e coquetelaria sofisticada, para ser consumida ao som de muita música e cultura em plena calçada de pedras portuguesas da Raimundo Correia.
Aliás, o poeta Correia era contemporâneo de Machado, e teve seu segundo livro, “Sinfonias”, prefaciado pelo bruxo do Cosme Velho. Não é por acaso, então, que essa coincidência de referências esteja inspirando o Assis Garrafaria a apostar também na literatura. Quarta que vem, dia 24, a poeta brasileira Daniela Belmiro lança no Brasil dois de seus livros já lançados em Portugal: “Desdicionário” e “de poliedros, caranguejos e outras paroxítonas”, que foi um dos seis livros de poetas em língua portuguesa selecionados pelo Festival de Poesia de Lisboa de 2022. Para completar a noite de autógrafos, um pocketshow de MPB nas vozes de Vani Ribeiro e Débora Gárcia, com violão de Maurício Capistrano.