“É Niterói ou São Gonçalo? É Pavuna ou São João?” Essas são apenas algumas das perguntas frequentes entre os moradores da Região Metropolitana do Rio que vivem no limite entre dois municípios. Conhecidos como bairros bimunicipais, essas localidades não só têm causado confusão entre os moradores, como também afetam o dia a dia e o acesso a serviços públicos essenciais.
Entre as principais queixas, destacam-se as dificuldades relacionadas ao acesso à saúde, educação, segurança e transporte. Os moradores reclamam que, por viverem em locais onde uma única rua pode colocá-los no município vizinho, muitas vezes são atendidos por uma cidade, outras vezes por outra, ou até mesmo por nenhuma delas.
Situação comum no estado
De acordo com a arquiteta e urbanista Luciana Nemer, essa situação não é nova. Ela explica que fenômenos como esse ocorrem em bairros limítrofes – ou seja, aqueles que fazem fronteira entre dois municípios – em regiões metropolitanas, como as de Niterói e do Rio.
“Usamos bastante o termo ‘conurbação’, fenômeno de junção de duas ou mais cidades. Esse processo ocorre quando os limites entre os municípios ficam pouco claros, deixando moradores e visitantes confusos. Nesses casos, as ‘fronteiras’ municipais desaparecem, o que acontece em várias cidades. A população geralmente espera que o limite seja definido por um acidente geográfico, como um córrego, rio ou cume de montanha”, explica.
É Rio ou Espírito Santo?
A especialista, que é professora titular da Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFF, ressalta que essa situação não ocorre apenas na Região Metropolitana, mas também em outras áreas do estado. Ela cita, por exemplo, o caso dos moradores que vivem na divisa entre Bom Jesus do Itabapoana, no Noroeste Fluminense, e Bom Jesus do Norte, no Espírito Santo.
“Essas duas cidades são separadas apenas por uma pequena ponte sobre o rio Itabapoana. O fluxo de moradores que vivem em uma cidade e trabalham na outra faz com que eles se considerem parte de uma única região, sentindo-se tanto do Rio quanto do Espírito Santo. Outro exemplo é Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, que faz fronteira com Rivera, no Uruguai. As duas cidades são separadas por uma via comum: a Avenida 33 Orientales, no lado uruguaio, e a Avenida João Pessoa, no lado brasileiro, como se fosse uma única avenida”, finaliza.
Queixa antiga em Niterói e São Gonçalo
Em Niterói e São Gonçalo, essa situação já se tornou comum entre os moradores. Bairros como Rio do Ouro, Maria Paula, Morro do Castro, Várzea das Moças, Tenente Jardim, Venda da Cruz e até Barreto constantemente são associados às duas cidades, sem saber ao certo a qual delas realmente pertencem.
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Esse é o caso da doméstica Divania Gomes, de 54 anos, moradora do Morro do Castro. Embora o bairro seja oficialmente reconhecido como parte do 5º distrito de São Gonçalo, Divania relata que o único ônibus que passa em frente à comunidade, por exemplo, tem um trajeto apenas por Niterói, o que, segundo ela, é incoerente, já que se trata do único bairro sem acesso direto à sua própria cidade.
“Tudo meu é em Niterói, porque acaba sendo mais fácil. Meus médicos, banco e outros compromissos. Como pode ser mais fácil chegar numa cidade que não é a minha?”, questiona.
Dificuldade no acesso à saúde
Além da locomoção, o atendimento à saúde é outro obstáculo que aflige a comunidade. Moradora do Morro do Castro há mais de 40 anos e mãe de três filhos, ela já perdeu a conta de quantas vezes se dirigiu ao posto de saúde próximo ao bairro, em São Gonçalo, apenas para ouvir que deveria buscar atendimento em outra unidade, em Niterói.
“Eu não sei mais de onde sou. Às vezes, quando vou ao posto de saúde, tenho que usar o endereço de parentes, tanto de Niterói quanto de São Gonçalo, para conseguir atendimento. Parece que a gente não pertence a lugar nenhum, é como se estivéssemos invisíveis para as duas cidades”, desabafa Divania.
Maria Paula está entre as duas cidades
Moradora de Maria Paula, Marta Costa, de 23 anos, estudante de história, vive dramas semelhantes. Ela relata que o bairro fica localizado no principal ponto que marca a divisa entre as cidades, a Estrada do Rio do Ouro (antiga Estrada Velha de Maricá), que serve de variante à RJ-104 em direção à Região dos Lagos (Rodovia Amaral Peixoto, RJ-106).
“Às vezes, parece que estou em São Gonçalo e, se andar um pouco, já estou em Niterói. É bastante confuso”, afirma Marta.
Mas, de acordo com ela, saber a qual município pertence não é o maior dos problemas dos moradores, já que, no fundo, todos se sentem abandonados tanto por Niterói quanto por São Gonçalo. A falta de iluminação pública e outras reformas em espaços públicos estão entre as principais queixas do bairro.
“Não é só sobre saber a qual cidade pertencemos, é sobre não sermos vistos por nenhuma delas. Não tem iluminação pública, as ruas estão péssimas, e as obras que prometem nunca saem do papel. Vivemos em um lugar esquecido, sem atenção nenhuma de Niterói ou São Gonçalo. Parece que estamos no limbo, sem ninguém que se importe”, reclama Costa.
Problemas podem afetar mais as periferias
No estado do Rio, as regiões periféricas costumam ser as mais afetadas por esse fenômeno. A especialista Luciana Nemer destaca que, embora nem todas as periferias enfrentem essa situação, a localização desses bairros, nas “entradas” ou “saídas” das cidades, em áreas de terrenos menos valorizados devido à distância do centro urbano, contribui para o aumento desses problemas.
“Outro fator a ser considerado é que algumas comunidades ocupam áreas de Especial Interesse Agrícola, destinadas à manutenção da atividade agropecuária das cidades, localizadas nas zonas mais periféricas, distantes da área central”, destaca.
A urbanista enfatiza, no entanto, que o acesso a serviços públicos é uma obrigação tanto do município quanto do Estado, mesmo em bairros localizados entre dois municípios.
“Independentemente do CEP, todos têm o mesmo direito à saúde, segurança e educação”, finaliza.
Possíveis soluções para os dilemas
A situação é ainda mais complicada de resolver agora que os municípios já foram formados urbanisticamente. Como possíveis soluções para esse problema, a arquiteta sugere que os governos municipais deveriam oferecer mais suporte aos serviços públicos, já que os moradores de uma cidade não poderão usufruir, por exemplo, da rede escolar municipal da outra.
Além disso, Luciana Nemer propõe aumentar a sinalização que demarca os limites dos municípios, não apenas nas rodovias, mas também nas avenidas e ruas, para tornar mais claro para os moradores a qual cidade pertencem.