Já ouvimos inúmeras vezes a afirmação de que, nos últimos cinco minutos de vida, as pessoas veem repassar diante dos seus olhos, como um filme, todas as suas existências. Alguns chamam a esse intrigante fenômeno de “recordação final”, já os americanófilos preferem chamar de “life´s flashback”. Podem dar as denominações que quiserem, mas eu posso afirmar que isso é uma grande invenção. Esse fenômeno inexiste. É caô. E afirmo isso porque já morri e não vi filme algum. Não é brincadeira. Eu já morri mesmo. E ressuscitei. Duas vezes. E nada de assistir filme com a minha vida.
Aos 10 anos de idade, ainda aprendendo a nadar na fazenda do meu padrasto, sempre audacioso, sem dizer a ninguém, eu tentei atravessar um açude nadando sozinho. Gabola, pensava voltar para casa contando a façanha. Não consegui. No meio do percurso cansei e afundei, emergi, submergi, bebi água, não senti medo nem dor, perdi os sentidos e acordei vomitando, de bruços, espichado no chão, socorrido que fui por um vaqueiro que milagrosamente passou pelo local e viu a minha irresponsável aventura. Pois bem, naquele dia, por alguns breves minutos, eu morri. E não vi nenhum filme da minha vida. À época, pela pouca idade, no máximo seria um curta metragem. Mas nem isso eu vi. Nada, não vi nada do meu passado.
Também na segunda vez que morri… sim, como já disse, eu morri outra vez. Morte chique, internacional. No deserto do Atacama.
Uma mescla de desidratação, altitude e descontrole do remédio regulador da pressão arterial, me fez ser encontrado desmaiado no chão do banheiro, no quarto do hotel. Fui salvo por Celinha (sempre ela!), que, com muita determinação, tomou a iniciativa de buscar um paramédico na recepção. A minha pressão arterial medida após uns 20 minutos do incidente mostrou 4 por 2, ele mediu. Naquela vez, a minha morte durou mais tempo. Mesmo assim, novamente, não assisti nenhum filme da minha vida.
Baseado nessas experiências pessoais, recomendo fortemente que se alguém quiser rever o seu passado trate de fazê-lo agora, acione os neurônios e reveja sua vida, seus bons e maus momentos. Não deixe pra hora da morte porque vai se decepcionar. É balela.
Outrossim, se disserem que, após meses de isolamento social, por espontânea vontade ou por conta de alguma pandemia, a sua memória irá aflorar e exibir muitos fatos que estavam esquecidos e escondidos em algum buraco do seu cérebro, podes crer. É verdade. Eu garanto. Aquele afogamento, por exemplo, já tinha sido raspado dos meus velhos neurônios. Do nada, durante a maldita Covid-19, voltei a lembrar dele. E esse não foi um fato isolado. Naquele período de reclusão, inúmeras lembranças com episódios que vivi reapareceram com inusitada nitidez.
E agora, depois de sobreviver das duas mortes, eu espero que minha vida, ainda com lucidez, se prolongue tanto, mas tanto, que para ser repassada antes da minha morte precise de um filme longo, cuja exibição gaste bem mais tempo do que os míseros cinco minutos de que falam os que acreditam na tal “recordação final”.
Egoisticamente, penso que, melhor do que um filme de longa metragem, eu queria mesmo era que minha vida ocupasse uma série com várias temporadas, tipo “Game of Thrones” ou “A Casa de Papel”.
Nossa Alfeu. Realmente Morretes duas vezes.
Agora sem dúvidas de que esse filme de despedida não existe .
Muito bom ter essa certeza .
Sempre se superando.
Lembrei-me que aos 13 anos, acometido por Crupe morri também e nada vi a nao ser apagado com vela na mão. Abraço
Aos 85 anos, ainda não tive nenhuma das experiências vividas pelo meu mestre e sobrinho, Alfeu. Quero morrer embriagado para não sentir dores, pois meu pai, Luiz Cadete, dizia que o desenlace era uma dor tão profunda que aniquilava o ser humano.
Gostaria de morrer umas dez vezes de brincadeirinha.
Alfeu, se um dia começar a ver o filme da minha vida, vou torcer para ter um controle remoto por perto para dar um “stop”!!! rsrsrs…