A Justiça Federal condenou a União, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a Fundação Cultural Palmares a cumprirem uma série de obrigações relacionadas à preservação e valorização do Cais do Valongo, sítio arqueológico localizado na zona portuária do Rio e reconhecido como patrimônio mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Foram duas sentenças em ações civis públicas movidas pelo Ministério Público Federal (MPF), em 2018 e 2021, para garantir o cumprimento de um pacto assinado em 2017.
Construído em 1811, o Cais do Valongo foi o principal ponto de desembarque e comércio de pessoas negras escravizadas nas Américas. Em 2017, a Unesco incluiu o sítio na lista de patrimônio cultural mundial, por reconhecer nele “a mais importante evidência física associada à chegada histórica de africanos escravizados no continente americano”. Segundo a Unesco, “é um sítio de consciência, o qual ilustra fortes e tangíveis associações a um dos mais terríveis crimes da humanidade, a escravidão de centenas de milhares de pessoas, criando a maior migração forçada da história”.
Providências e prazos
A Justiça Federal determinou que a União, o Iphan e a Fundação Cultural Palmares apresentem, em 30 dias, cronograma de trabalho com medidas a serem adotadas para o cumprimento das obrigações contraídas com a Unesco. E em 60 dias, concluam a avaliação técnica do projeto executivo de reforma do Galpão Docas, assinada por profissional de arquitetura ou engenharia habilitado, indicando o que precisa ser revisto — para que se dê prosseguimento à licitação da obra.
Por fim, que em 180 dias a contar do fim da revisão do projeto, iniciem as as obras de construção do Centro de Referência e Celebração da Herança Africana no prédio histórico de Docas Pedro II. E os resultados sobre as ações previstas no plano de gestão devem ser apresentados à sociedade, por meio de relatórios, pela União e pelo Iphan em cinco anos.
Negligência e omissão
A Justiça destacou que o atraso de mais de cinco anos em cumprir o que foi pactuado com a Unesco reflete uma preocupante negligência com a preservação da memória histórica e a importância de honrar as vítimas da escravidão, retardando a criação de um espaço fundamental para a educação e a justiça social.
“O sítio não apenas evidencia a magnitude do tráfico de escravos no Brasil, mas também serve como um espaço para a reflexão sobre as profundas cicatrizes deixadas pela escravidão e seus efeitos persistentes na sociedade contemporânea, sendo o mais evidente o racismo estrutural”, diz uma das sentenças.
Apesar de alguns avanços, o processo emperrou na apresentação do projeto do Centro de Referência e previsão de início de construção. Aos solicitarem novos prazos para o cumprimento das obrigações, a União e o Iphan demonstram, conforme a Justiça, falta de compromisso com a preservação e valorização de um patrimônio cultural de imenso valor histórico, não apenas para o Brasil, mas para o mundo.
“A omissão do poder público ao não concluir o projeto compromete a preservação da memória histórica das vítimas da escravidão e a reparação de injustiças históricas, direitos que estão intrinsecamente ligados à dignidade da pessoa humana e à promoção da igualdade racial, ambos consagrados na Constituição da República”, destaca trecho de uma das sentenças.
Conservação
O MPF acompanha, há dez anos, as medidas administrativas adotadas pelos órgãos públicos federais, estaduais e municipais, voltadas à conservação, proteção e valorização do Cais do Valongo.
Os procuradores da República Sergio Gardenghi Suiama e Jaime Mitropoulos, autores das ações, disseram achar lamentável que a Justiça tenha que intervir para fazer o Estado cumprir obrigações vencidas em 2019.
“A omissão da União prejudica o conhecimento histórico sobre a escravidão e o tráfico transatlântico, e, consequentemente, contribui para a perpetuação de concepções racistas e discriminatórias”, afirmam.
Caso as obrigações determinadas pela Justiça não sejam cumpridas, há previsão de multa de R$ 1 mil por dia de atraso, até chegar a R$ 5 milhões, a ser revertida ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos.