Nome de rua, praça e até palácio. Tiradentes é um mineiro que podemos quase chamar de carioca. Nesta segunda-feira (21), quando se celebra o feriado nacional em sua homenagem, é impossível não destacar a forte presença simbólica que ele deixou em diversos pontos do estado e, principalmente, na cidade do Rio.
No Centro, é difícil caminhar algumas quadras sem esbarrar em alguma referência a Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, nascido em 12 de novembro de 1746, em Ritápolis (MG).
Herói da Inconfidência Mineira — movimento do final do século 18 que buscava a independência de Minas Gerais em relação à Coroa Portuguesa —, ele foi executado no Largo da Lampadosa, em 1792, onde agora se encontra a famosa Praça Tiradentes.
Mas, ao contrário de cair no esquecimento, sua imagem se espalhou pelo cenário urbano da cidade.
Lembranças da escola
Para a estudante de Fisioterapia Gabriela Duarte, de 24 anos, a lembrança de Tiradentes vem desde os tempos da escola. E, curiosamente, ela conta que, por um bom tempo, achava que ele era carioca.
“A gente ouve tanto falar dele aqui no Rio, tem nome de rua, praça… que eu achava que ele era daqui. Só depois entendi que ele era mineiro. Mas acho muito importante manter viva essa memória. Figuras como Tiradentes ajudam a gente a entender o nosso passado para poder caminhar rumo a um futuro melhor”, diz Gabriela.
Relação com a história do Rio
Já o administrador Paulo Sérgio Almeida, de 53 anos, cresceu passando pelas referências ao mineiro e hoje trabalha perto do Palácio Tiradentes, histórica sede da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), que também leva o nome do mártir. Para ele, a relação do Rio com Tiradentes vai além dos nomes nos monumentos — tem a ver com a própria história da cidade.
“Tiradentes foi enforcado aqui, né. E foi um momento muito marcante na história do Rio, que era a capital do Império. Hoje, transformamos ele em um grande herói nacional. Eu imagino que ele também possa ter tido defeitos, mas não tem como negar que é uma figura histórica que merece, no mínimo, a nossa atenção”, afirma.
‘Símbolo’
A fotógrafa Juliana Nascimento, de 32 anos, por sua vez, se interessa pelo modo como a história molda a imagem dos personagens do passado. Ela destaca como Tiradentes foi reinventado ao longo dos anos até se tornar o rosto da luta contra a opressão.
“É curioso como ele virou um símbolo tão forte. Ele ganhou essa aura de mártir na história, como uma espécie de Jesus Cristo, barbudo e que morreu por um ideal. Acho que a cidade do Rio ajudou a formar essa imagem ao dar visibilidade a ele em tantos lugares”, reflete.
Palácio Tiradentes

Uma das principais homenagens a ele é o Palácio Tiradentes, que foi sede da Câmara dos Deputados (1926-1960), do Departamento de Imprensa e Propaganda (1939-1945), do Legislativo do Estado da Guanabara (1960-1963) e da Assembleia Legislativa do Estado do Rio (1975-2021).
O professor da Escola do Legislativo (Elerj), Douglas Liborio, que também é doutorando em História na Universidade Federal Fluminense (UFF), explica como se deu esse processo de nomeação do palácio, que também possui a estátua de Tiradentes.
“Curiosamente, quando o prédio foi inaugurado, em 6 de maio de 1926, ele não se chamava Palácio Tiradentes. Foi inaugurado para celebrar os 100 anos do Parlamento no Brasil e passou a ser chamado ‘Palácio Tiradentes’ em 1936, após o deputado João Batista Gomes Ferraz apresentar um projeto de lei, em virtude do decreto de Getúlio Vargas que repatriou as ossadas. Em 1942, foi inaugurado o Panteão da Inconfidência, concluindo esse processo, atualmente representado pelo Museu da Inconfidência em Ouro Preto”, compartilha.
Praça Tiradentes

Outra homenagem é a famosa Praça Tiradentes. Localizada no centro histórico do Rio, a praça ocupa o antigo Largo da Lampadosa, onde, segundo historiadores, Tiradentes foi enforcado e teve o corpo esquartejado. Sua cabeça foi exposta em um poste em Vila Rica, sua casa foi destruída e seus descendentes foram declarados infames. Em 1890, após a Proclamação da República, o local recebeu oficialmente o nome de Praça Tiradentes, em homenagem ao mártir que se tornou um herói nacional.
Além de praças e ruas, o líder político — que foi dentista, tropeiro, minerador, comerciante e militar — também está estampado na medalha de maior honraria concedida pela Alerj, que, por sinal, leva o seu nome. Instituída pela Resolução nº 359, de 8 de agosto de 1989, a Medalha Tiradentes é destinada a reconhecer pessoas e instituições que prestaram relevantes serviços à causa pública do estado.
Rio e Minas Gerais
Luciano Figueiredo, professor do Instituto de História da UFF e editor do site Impressões Rebeldes — que reúne artigos, documentos e biografias sobre as revoltas brasileiras — explica que essa relação de Tiradentes com o Rio se dá porque, no século 18, a cidade “era quase um anexo de Minas Gerais”. Ele destaca que, apesar de ser a capital da colônia desde meados desse século, os cariocas deviam quase tudo aos mineiros, graças ao ouro e ao fluxo de mercadorias entre as duas regiões.
“Entre 1779, quando vem aqui pela primeira vez, e 1789, quando também aqui foi preso, inúmeras vezes desceu e subiu o caminho novo. Numa estadia prolongada, quando estava de licença, desenvolveu projetos de canalização de rios, inclusive do Maracanã, e de construção de grandes armazéns no porto. Como outros de seus projetos, estes fracassaram. Só não fracassou sua popularidade no Rio, onde era conhecido de muita gente”, afirmou.
‘Cidade cruel para o inconfidente’
Figueiredo enfatiza que Tiradentes não foi apenas executado na cidade, mas também preso, depois que correu a denúncia feita por Joaquim Silvério dos Reis, num sótão no Centro da cidade, segurando um bacamarte, escondido atrás de uma cama.
“A partir daí o Rio se tornaria uma cidade cruel para o inconfidente: ficaria preso em uma fortaleza, passaria pelas masmorras da ilha das cobras, desfilaria pelas ruas do centro até o patíbulo onde seria enforcado próximo à atual praça Tiradentes. Sobre o local exato, as discussões ainda correm”, explica o professor, lembrando também o livro “Tiradentes Carioca”, de André Luis Mansur e Ronaldo Morais, lançado em 2017.
‘Herói construído’

Douglas Liborio, que foi homenageado com a Medalha Tiradentes em março deste ano, explica que o mineiro, na verdade, é um herói construído pela República. Para o pesquisador, a figura do dentista atravessa épocas, contextos e espaços, sendo constantemente instrumentalizada na história, principalmente por não haver referências de como ele, de fato, era.
“Isso acontece, em parte, porque, no momento em que sua imagem começou a ser construída, não se sabia como ele era. Não havia registro visual. Como ele foi esquartejado, não restaram descrições. Cem anos depois, cria-se uma imagem simbólica. Essa ausência de imagem o torna maleável. Ele vira uma figura que serve para diferentes discursos, diferentes usos históricos. E a própria presença de Tiradentes na cultura do Rio, desde o Primeiro e o Segundo Reinado, permite que a República facilmente o transforme num ícone oficial”, narra.
‘O alferes não pode ser esquecido’
Por o pesquisador Luciano Figueiredo, “o alferes não pode ser esquecido”. Segundo ele, Joaquim José da Silva Xavier foi dono de uma consciência política “aguçada” que ele forjou num cotidiano embalado por desgostos pessoais, aprendizado e altas doses de utopia.
“Já se sabe que, de pobre e humilde, ‘o Tiradentes’ não tinha nada. Nem por isso deixou de pregar ideias de insurreição entre os grupos populares com quem trocava ideias nas estradas mineiras, tabernas, saraus e fazendas. Nos encontros com a elite, alguns de seus companheiros haviam sido estudantes na Europa, e ele não se intimidava ao defender o fim da escravidão. Sua biografia deixa muitos legados. Dentre eles, destacaria a coragem e a ousadia de lutar por seus ideais, mesmo com altos riscos de vida”, explica Figueiredo.
Importância do feriado
O professor da UFF enfatiza que “Tiradentes ganhou um feriado nacional para chamar de seu” e explica que, no século 19, os republicanos o escolheram como símbolo e, com a Proclamação da República, resolveram homenageá-lo.
“Não se pode ter feriados para todos os nossos rebeldes (do contrário, ninguém mais ia trabalhar no Brasil), basta ver quantos e quantas foram e como as rebeliões foram frequentes, como está no site Impressões Rebeldes, da UFF”, destaca o professor, que propõe que, a cada ano, como um feriado rotativo, celebremos em todo o país ao menos um deles, como Frei Caneca (Confederação do Equador), Maria da Cruz (Motins do Sertão de Minas Gerais), entre outros.
Para Douglas Liborio, no entanto, independentemente das discussões em torno da construção de Tiradentes como herói, o feriado, instituído em 14 de janeiro de 1890, é importante para levantar reflexões sobre o contexto histórico em que ele foi memorializado, principalmente no Estado do Rio.
“O 21 de abril mostra que a história do Brasil não pode ser separada da história de estados como o Rio de Janeiro e Minas Gerais. Hoje, revisitar essa figura é recuperar reflexões. Ele foi erguido como símbolo de uma República que, à época, era profundamente excludente — sem participação de negros, mulheres, indígenas. Mais de 130 anos depois, o Brasil ampliou essa participação popular, mas ainda enfrenta desafios, como a desigualdade social”, explica.
‘Ideia de liberdade’
Liborio, autor do livro “Palácio Tiradentes: Arte e Política no Brasil Republicano”, que explora a história política e cultural do Brasil por meio do palácio, acredita que a imagem de Tiradentes “remete à ideia de liberdade”.
“E, hoje, num mundo em que os valores democráticos e a liberdade estão em crise, recuperar essa figura nos provoca: que heróis temos hoje? Será que precisamos de heróis? Olhar para Tiradentes hoje talvez gere mais dúvidas do que respostas. E isso é bom. A nossa geração não é a geração das certezas. O mundo em que vivemos não é o mundo das certezas. É o momento da dúvida, de buscar outros caminhos. Principalmente, ele nos ensina a quebrar a hierarquia de tempo e espaço”, finaliza.