Eu era um jovem repórter em seu primeiro emprego, quando, em outubro de 1982, passei, pela primeira vez, um dia inteiro numa favela, do começo da manhã ao começo da noite. Eram apenas as segundas eleições para vereador no Rio de Janeiro (Distrito Federal até 1960, estado da Guanabara até 1975) e a primeira após o fim do bipartidarismo, novos atores políticos ganhavam a cena e havia um líder comunitário da Favela Santa Marta, na Zona Sul, candidato a vereador. O Jornal do Brasil – meu empregador – queria contar as demandas dos moradores da favela e sua relação com um candidato local, depois de anos sem voz; a ditadura fechou as primeiras e ainda incipientes associações comunitárias criadas antes do golpe militar de 1964.
Minha memória volta a este dia em 1982 – subindo e descendo as ruelas do morro – guiada pelo julgamento no STF da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, a chamada ADPF das Favelas, exatamente por questionar a constitucionalidade das operações policiais em comunidades faveladas do Rio de Janeiro. Uma liminar, desde 2020, criou restrições às ações sempre violentas da polícia. Ás vésperas do julgamento, as autoridades públicas do Rio buscam pressionar o STF para suspender as restrições. Incapaz de formular uma política de segurança qualquer, o governador Claudio Castro disse que as restrições estão “fomentando um poder paralelo” e causando “efeitos colaterais gravíssimos para o Rio”. O prefeito Eduardo Paes – como para mostrar que sua estatura política é semelhante a do governador – disse que a ADPF “cria uma sensação de que o Rio de Janeiro virou, sei lá, um resort para delinquentes”.
Naquelas eleições de 1982, a segurança nem estava entre as principais preocupações dos moradores da Santa Marta. A comunidade reclamava com Gilson Cardoso, o candidato a vereador pelo recém-fundado PT, do esgoto a céu aberto, da falta de água encanada, da falta de coleta de lixo, da necessidade de um posto de saúde no alto da favela, na irregularidade no fornecimento de energia elétrica (a eletrificação no morro começara apenas na década anterior) e de ações para a contenção das encostas – a ameaça de deslizamentos aterrorizava os moradores a cada tempestade de verão. Circulei pelas vielas por mais de oito horas, sem qualquer restrição, conversando com os eleitores e acompanhando a panfletagem do candidato, atividades registradas ainda pela manhã pelo fotógrafo do jornal, também sem qualquer problema. Passei pelo menos por duas vezes pela boca de fumo – o ponto principal de venda de maconha) na entrada da favela e não vi gente armada, apesar de alguns moradores reclamarem dos “garotos”, que, às vezes, circulavam com revólveres na cintura.
De volta a Brasília, ao STF e ao século 21, o foco do voto de 186 páginas do ministro Edson Facchin, relator da ADPF das Favelas, é a redução da letalidade policial. Para ser claro: conter a sanha assassina das operações policiais no Rio de Janeiro, preservar vidas, o que deveria ser a prioridade de qualquer polícia. Fachin defende a manutenção de medidas básicas: proíbe uso de escolas e postos de saúde como base operacionais, restringe o uso de armas a partir de helicópteros, determina a presença de ambulância para socorro a possíveis vítimas, impõe o uso de câmeras nos uniformes dos policiais e, estabelece o aviso prévio ao Ministério Público em casos de grandes operações. Ao abrir o julgamento, Facchin, em seu voto, acrescentou novas medidas: afastamento de policiais envolvidos em mais de uma operação com mortes, perícia independente, regras e prazos para o uso das câmeras corporais e a criação de um comitê de acompanhamento do cumprimento dessas medidas. A leitura das 186 páginas do voto dá a dimensão da tragédia vivida pelos moradores das favelas do Rio – e também de outras partes do Brasil.
Retorno aos anos 1980 e ao Morro Dona Marta – comunidade e acidente geográfico têm nomes diferentes. Quase seis anos depois daquela minha visita, a favela voltaria às páginas dos jornais pela disputa sangrenta entre traficantes rivais pelo controle das bocas de fumo. Foram pelo menos duas semanas de tiros e mortes, que aterrorizaram os moradores da favela e da classe média de Botafogo, bairro onde está o morro – os traficantes atiravam nos transformadores de energia, deixando a comunidade e parte da vizinhança às escuras. O Comando Vermelho, criado na década anterior, ampliava e consolidava a exploração do comércio de drogas nas comunidades, exatamente no período do governo Moreira Franco que teve como promessa de campanha acabar com a violência em seis meses.
Quando este século 21 completa seu primeiro quarto, os moradores das favelas do Rio de Janeiro vivem, em sua imensa maioria, sob regime de exceção, onde valem as regras estabelecidas por criminosos. Esta opressão começou lá naquelas duas últimas décadas do século passado, quando os exploradores do comércio de drogas ilícitas usaram as favelas como pontos de venda no varejo, protegendo seu negócio – da concorrência e das operações policiais, que, muitas vezes, confundiam-se – com uma tropa armada. Em muitas comunidades faveladas, os varejistas praticavam uma política assistencialista com os desassistidos dessas áreas, garantindo uma complacência com a atividade ilegal.
O novo século viu a ascensão das milícias, grupos armados que foram ocupando as comunidades, explorando outros serviços – água, gás, internet e segurança, extorquindo moradores e comerciantes. Essas milícias – formadas majoritariamente por ex-policiais e outros egressos das forças de segurança (alguns ainda na ativa) – contaram com a complacência oficial nessa ofensiva. Os conflitos entre os grupos criminosos tornaram esses carrascos das favelas cada vez mais semelhantes: milicianos passaram a vender drogas, traficantes passaram a extorquir e explorar serviços.
A localização privilegiada da Favela Santa Marta – encravada no meio de um bairro de classe média – garantiu, com o tempo, melhores serviços: há acesso à agua em toda a comunidade, uma rede de esgoto, apesar de ainda precária, e coleta comunitária de lixo; uma clínica da família funciona no morro e mantém visitas regulares das equipes de saúde; um plano inclinado foi instalado para o acesso ao alto do morro, que já foi cenário de vídeoclipe de Michael Jackson, de gravação de séries e novelas, e locação do filme Velozes e Furiosos 5.
Ao circular pela praça que dá acesso à favela em 2025, é possível reconhecer os olhares de desconfiança com qualquer pessoa estranha à comunidade. Os vizinhos garantem que o comércio segue ativo e as armas são cada vez mais visíveis. Ainda assim, os cinco mil moradores do morro são privilegiados em relação aos que vivem em comunidades faveladas do resto da cidade – há quase 10 anos, não há operações policiais espalhafatosas – com tropas das forças especiais, caveirões e sobrevoos de helicópteros -, daquelas que exigiriam o cumprimento das regras estabelecidas pela liminar no STF.
Em Brasília, o ministro Alexandre de Moraes – ex-promotor, ex-secretário de Segurança de São Paulo, ex-ministro da Justiça e Segurança Pública – se manifesta no julgamento para defender o uso de armas pesadas no combate ao crime. “Qualquer operação no Rio de Janeiro – porque estamos a falar do Rio de Janeiro – contra milícias, tráfico de drogas, me parece óbvio que o armamento a ser utilizado é o armamento mais pesado possível que a polícia tenha”, afirma. Não é preciso dizer que Moraes imagina esse uso de poder bélico nas favelas (do Rio de Janeiro, como ele mesmo frisa) – nunca em condomínios da Barra da Tijuca, parte nobre da capital carioca onde vez por outra a polícia prende um miliciano ou um traficante de escalão mais alto, ou mesmo do Jardim Europa, área nobre de São Paulo, onde mora o magistrado.
![A mensagem de uma favela para todas as favelas e seus carrascos](https://controle.temporealrj.com/wp-content/uploads/2025/02/20250211favelasmarta2-trbr-0823-1024x683.jpg)
Quem ouve o governador Castro, o prefeito Paes ou o ministro Moraes pode imaginar que, desde a liminar, a polícia do Rio restringiu suas operações nas favelas. Mentira, fake news, falácia. Levantamento do Ministério Público do Rio de Janeiro aponta que, de junho de 2020 a janeiro deste ano, as policiais Civil e Militar do Rio de Janeiro comunicaram a realização de cerca de 4.600 operações em comunidades do estado, ou seja, uma média de três operações por dia. Neste período, em plena vigência da liminar, ocorreram as duas operações policiais mais letais da história do Rio. No Jacarezinho, em 2021, policiais mataram 27 “suspeitos” – um inspetor da Polícia Civil também foi assassinado. Em 2022, na Vila Cruzeiro, foram 25 mortos no total – pelo menos 16 não tinham antecedentes criminais.
São por operações letais assim que as forças de seguranças são carrascos das favelas, semelhantes a milicianos e a traficantes. Para muitos, carrascos piores: nenhum conflito entre traficantes e milicianos – e eles são cada vez mais frequentes – deixou tantos mortos. Há mais registros de inocentes vítimas de balas perdidas nas operações policiais do que nos tiroteios entre criminosos.
Na entrada da Favela Santa Marta, um guia turístico local explica a um grupo de estrangeiros (quatro dos EUA, dois da América do Sul) como será a visita à comunidade: eles subirão pelo plano inclinado até o alto do morro onde aproveitaram a vista privilegiada – inclusive do Cristo do Corcovado e do Pão de Açúcar – do Mirante Dona Marta; e, na descida a pé, vão parar na estátua de Michael Jackson, instalada na laje onde foi gravado o clipe, em lojas de souvenirs, em locais para se refrescar e hidratar no calor de quase 40 graus, em duas lojas de souvenirs, e no local de ensaio da Mocidade Unida do Santa Marta, a escola de samba local, onde poderão acompanhar uma apresentação dos ritmistas. “A cultura do Rio nasce nas favelas”, explica o guia da Santa Marta Tour em inglês perfeito. Ele orienta o grupo, entretanto, a não fotografar ou filmar as pessoas sem pedir permissão. “Os moradores das favelas são criminalizados pela polícia e por grande parte da sociedade que vive no asfalto. Muitos vivem com medo”.
Essa mensagem da favela talvez não chegue aos palácios do Rio ou de Brasília – no Supremo, o presidente da corte – Luís Roberto Barroso, nascido no estado do Rio – suspendeu o julgamento para que os ministros pudessem “digerir” o voto de Fachin, em que o ministro relator “reconhece um estado de coisas ainda inconstitucional na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro”.
Para libertar essa população do medo, é preciso libertá-la de seus carrascos, de todos os seus carrascos. Como fazer isso é a pergunta que desafia autoridades cariocas e brasileiras há 40 anos. E a resposta não está em usar “o armamento mais pesado possível” nas favelas.