Reduto do samba carioca e tradicional bairro da Zona Norte do Rio, Vila Isabel tem enfrentado uma escalada da violência nos últimos meses, marcada por tiroteios, operações policiais e confrontos armados. Só neste ano, foram registrados 60 tiroteios na região, quase o dobro do mesmo período em 2024, quando ocorreram 34 episódios, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado.
O epicentro dessa violência é o Morro dos Macacos, palco de uma disputa entre duas facções criminosas: o Comando Vermelho (CV) e o Terceiro Comando Puro (TCP). Os confrontos se intensificaram principalmente no último dia 11, com a morte de Titauro, de 25 anos, um dos líderes do tráfico local, durante uma operação do Batalhão de Operações Especiais (Bope).
Desde então, criminosos do TCP reagiram com ainda mais violência, tentando retomar o controle da favela, que atualmente está dominada pelo CV. A rotina dos moradores foi drasticamente afetada: escolas e unidades de saúde fecharam as portas, comércios funcionam às moscas e placas de “vende-se” e “aluga-se” proliferam pelas ruas.
Moradores temem o cenário de violência
Marcos Costa, bancário de 46 anos e morador do bairro há quase uma década, conhece de perto esse cenário e lamenta a situação.
“É muito triste ver um bairro tão tradicional e importante na história do Rio passar por isso. Sempre gostei de morar aqui, mas agora está ficando impossível. É muita violência, muita coisa acontecendo. Espero que isso se resolva logo e que possamos voltar a sair às ruas com a liberdade de antes”, afirma.

Relação dos moradores com o bairro é profunda
Já o físico Miguel Lopes, 24 anos, decidiu permanecer no bairro. Com casamento marcado para agosto, escolheu construir sua vida ali — lugar que começou a frequentar em 2019, quando estudava na Universidade do Estado do Rio (Uerj), no Maracanã.
“Não demorou para eu me encantar, vindo de cidade pequena [Magé]. Essa boemia da Vila, o samba, a sensação de um bairro vivo, com gente na rua… Não importa a hora, sempre tem movimento, pessoas conhecidas, aquele sentimento de vizinhança. Isso me faz querer ficar. Tenho esperança de que esse conflito será resolvido logo”, destaca.
‘Dá até receio de voltar para casa’
Miguel admite, porém, que a violência o assusta.
“No começo, ouvíamos barulhos isolados, pontuais. Assustava, claro — ninguém está acostumado com isso. Mas dava para lidar. Com essa escalada desde o ano passado, mudou. Hoje a luz acaba no meio da noite por causa dos tiroteios constantes. Dá até receio de voltar para casa, porque não sabemos o que pode acontecer no caminho”, analisa.
Zona Norte concentra cenário de confrontos no Rio
De acordo com o último mapa da violência do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni/UFF) e do Fogo Cruzado, o Rio é a cidade com maior frequência de confrontos armados (19.954) da Região Metropolitana, representando 52,1% dos 38.271 episódios. A Zona Norte foi a área mais afetada da capital, com 11.433 confrontos — 57,3% do total da cidade.
Quanto ao controle territorial, em apenas 5,4% dos territórios da Região Metropolitana houve alteração de domínio por meio de conflito entre 2017 e 2022. O CV foi a facção que mais conquistou áreas em disputas, com 45,3% dos casos de mudança de controle. Em seguida aparecem as milícias (25,5%), o TCP (23,3%) e o Amigos dos Amigos (ADA), com 5,7%.
Dentre os confrontos registrados em áreas dominadas, a maior parte (62,6%) ocorre em territórios do CV, seguido pelas áreas de milícias (21,6%), do TCP (10,3%) e da ADA (5,3%). As milícias lideram, porém, em proporção de territórios dominados sem registro de confrontos (50,6%).

Especialistas explicam a escalada da violência
Daniel Hirata, diretor do Geni-UFF e coordenador do relatório, analisa o cenário da disputa em Vila Isabel. Ele destaca que a intensificação dos confrontos ocorre por o bairro ser ponto estratégico que conecta a Zona Norte à Zona Oeste e por ser tradicionalmente área de controle do TCP, ambicionada pelo CV.
“É importante dizer que, quando temos áreas críticas em que os confrontos armados apresentam características de alta frequência e grande intensidade, é necessário adotar ações específicas para atuar nesses locais. A maior parte dos conflitos, porém, não é nem frequente nem intensa; na verdade, são episódios ocasionais e de baixa intensidade”, analisa o professor.
Operações policiais têm eficácia limitada
Hirata ressalta que há locais onde a violência é mais crônica, frequente e intensa, e que as operações policiais têm eficácia limitada, embora sejam parte necessária da resposta.
“É importante que também tenhamos uma atuação com foco investigativo, para que possamos desmantelar essas redes criminais e atuar na estabilização desses locais de forma mais sustentável”, acrescenta.
Moradores são os mais afetados
Por sua vez, Maria Isabel Couto, diretora de Dados e Transparência do Fogo Cruzado e coautora do relatório, destaca dentro do trabalho que o confronto não é a principal causa da expansão das facções, mas que os principais afetados são os moradores.
“O confronto não é o principal responsável pela expansão dos grupos armados no Grande Rio. O que nos faz pensar que a atuação conflituosa das polícias também não será responsável por impedir que esses grupos continuem ganhando território. Quais as principais consequências, então, dos confrontos? A exposição da população, o medo, as escolas fechadas e o transporte interrompido, eventos tão frequentes”, afirma.
Luz no fim do túnel?
Por outro lado, Maria Isabel também aponta que, embora o Rio registre níveis inaceitáveis de tiroteios, os dados podem ajudar a direcionar as ações públicas.
“É verdade que vivemos num estado que registra níveis inaceitáveis de tiroteios. Mas isso não resume a situação do Rio. Hoje podemos identificar padrões da violência armada que podem ajudar a priorizar áreas de intervenção do poder público, bem como ajustar as medidas a serem adotadas conforme as necessidades de cada local”, conclui.
O que dizem as autoridades
A Polícia Militar do Estado do Rio informou, em nota, que está atenta à situação no bairro. Segundo a Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP), a corporação tem realizado ações constantes no Morro dos Macacos, reforçando o policiamento ostensivo para coibir criminosos.
A PM destacou a operação do dia 11 de julho, que resultou na morte de Titauro. A ação foi desencadeada após informações de que criminosos fortemente armados estariam reunidos no local. As equipes localizaram o traficante, apontado como um dos principais articuladores da disputa territorial.
“O policiamento segue intensificado, visando coibir a movimentação de criminosos nas comunidades da região de Vila Isabel, na Zona Norte da capital”, finalizou a corporação.