Em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio, a arte se entrelaça com as vivências e histórias das 63 favelas da cidade. E foi isso que a jovem designer Nayany Bastos percebeu. Ela é autora do projeto editorial “AULAS CRIA! O Design & Arte na Favela de São Gonçalo”, que busca valorizar os trabalhos artísticos locais e mostrar o que há de especial no município.
A iniciativa, inclusive, conquistou, na última quinta-feira (8), o iF Design Student Award, um dos prêmios de design mais respeitados do mundo.
A vitória, no entanto, não veio apenas pelo refinamento estético ou pela execução técnica. Ela carrega história, identidade e propósito — de alguém que conhece de perto São Gonçalo e foi a primeira da família a ingressar no ensino superior.
‘Realidade distante’
“Nasci em São Gonçalo, filha de Nilson Bastos e Dineia Ferreira, e morei na cidade durante toda a minha vida até ter a oportunidade de frequentar uma faculdade pública em 2020. Essa era uma realidade distante, pois fui a primeira da minha família a alcançar esse feito, e a possibilidade de viver um sonho em outro estado sempre parecia ainda mais remota”, explica a artista.

Um olhar único para São Gonçalo
O projeto “AULAS CRIA!” é um manifesto visual e narrativo que parte da vivência para propor um olhar único sobre a potência cultural das periferias. A proposta é clara: mostrar como o design pode servir como ferramenta de inclusão, expressão e valorização das vozes da cidade. Para isso, o trabalho homenageia artistas locais como Siri do Muro (@siridomuro), Layla Werneck (@layla.werneck), MEL (@notfakemel), Mathaus Mattos (@mathausmattos) e Larissa Gomes (@laridacriatella).
Segundo Nayany, nascer e crescer em São Gonçalo proporcionou um olhar especial para seu trabalho. Ela destaca como o retrato das desigualdades sociais enfrentadas por moradores de favelas moldou não só sua profissão, mas também sua visão de mundo.
“Nascer e crescer em uma favela me proporcionou a compreensão e o aprendizado de muitas questões, especialmente sociais, políticas e econômicas. As desigualdades sociais frequentemente levaram a questionamentos sobre oportunidades, esperança e o desenvolvimento de um futuro, que muitas vezes não se concretizava para alguns”, explica.


Os desafios da vida na favela
A vida na favela, somada à perda de seu pai, em 2006, despertou nela o senso de responsabilidade por transformar o futuro, buscando qualidade de vida e conforto para a família. Ela destaca os diversos desafios que cercam os moradores das periferias de São Gonçalo — como a locomoção para o trabalho e a escola, transportes lotados, engarrafamentos, baixos salários, desemprego, entre outros — questões retratadas em seu trabalho por meio da arte.
“Com o projeto, destaquei a trajetória do design e arte, e como ele é desenvolvido nas favelas, evidenciando como são ricas em aspectos culturais e conceitos únicos, dando voz às suas experiências e lutas. O design e a arte na periferia apresentam um conjunto único de desafios e potencialidades. Nesse contexto, designers e artistas enfrentam uma série de circunstâncias particulares que podem impactar seu trabalho. A limitação de recursos acessíveis é uma das principais dificuldades do design periférico. Materiais, tecnologia e acesso à informação podem ser mais restritos, exigindo estratégias alternativas ou soluções improvisadas”, compartilha.

Sobre o título do projeto
O título do projeto também carrega significados. Na linguagem popular carioca, “aulas” é um elogio — é quando alguém manda bem demais. Já “cria” define quem é raiz de um lugar, quem nasceu e cresceu ali, com todas as marcas e heranças que isso implica.
“No Rio, existem várias gírias famosas entre os cariocas, e ‘aulas, cria!’ não é uma exceção”, explica Nayany, que incorporou a expressão como afirmação de orgulho e pertencimento.
Apesar das dificuldades, Nayany ressalta como a criatividade e a arte têm um papel fundamental nesse cenário, principalmente no desenvolvimento e na criação de soluções únicas. Para a designer, a proximidade com a favela proporciona uma conexão mais forte e uma influência mais direta na vida das pessoas — um amor que ela escolheu representar da forma que mais domina: a arte.

‘Valorizar as identidades’
“Essa abordagem oferece a oportunidade de valorizar as identidades e o potencial criativo de culturas marginalizadas, promovendo um design e arte inclusivos e transformadores para essas comunidades. Em uma das pesquisas, observou-se a proposta de tratar o design como uma prática de liberdade, refletindo sobre suas possibilidades”, finaliza.
O iF Design Student Award recebe cerca de 10 mil inscrições a cada edição. Todos os anos, a premiação revela novos talentos e soluções inspiradoras. Além do reconhecimento e da visibilidade internacional proporcionados por um selo iF, os melhores projetos recebem prêmios em dinheiro, que totalizam 50 mil euros.