No Rio, as tradicionais batalhas de rima têm revelado um novo fenômeno que vem movimentando a cena do hip-hop carioca: o encontro — por vezes tenso — entre gerações. De um lado, os veteranos, representantes do estilo “raiz”, que carregam a memória das primeiras rodas na Lapa e nos subúrbios; do outro, os jovens, apelidados por muitos de “nutella”, conectados pelas redes sociais, com celulares em mãos e versos virais na ponta da língua.
A popularização do movimento, impulsionada pelo crescimento das redes sociais como Instagram e YouTube, trouxe um novo público que não costumava consumir as velhas batalhas de rima do início dos anos 2000. O veterano Antônio “Toninho” da Costa, de 48 anos, motorista de aplicativo em Campo Grande, enxerga com certa desconfiança os rumos do movimento que ele viu nascer.
‘Fico com medo de perder o foco’
“Eu comecei a frequentar as batalhas na época da Batalha do Real. Para a gente, aquilo era mais que um evento, era uma forma de sobreviver. Hoje, eu fico observando a galera mais nova e vejo como mudou o público. Eu entendo que o rap tomou novas formas, mas fico com medo de perder o foco”, afirma.
Para ele, o “movimento de rima é muito mais do que ganhar view ou curtir a fama”.
“Era pra falar da nossa vida, da nossa luta. A galera jovem hoje precisa saber disso. Eu vou ainda, mas fico um pouco preocupado. Às vezes, parece que o verdadeiro significado das batalhas vai ficando para trás, e o que fica é só uma competição vazia”, finaliza.
Novo tempo das batalhas
Já Jorge Santana, segurança de 49 anos e morador de Madureira, figura constante nas batalhas desde os tempos em que a galera se reunia sem microfone ou palco, vê com bons olhos o envolvimento dessa nova geração. Ele argumenta que as coisas mudam — e “tudo bem”. Hoje, leva o filho de 12 anos para acompanhar as rodas.
“Eu estou nas batalhas desde o tempo da Lapa, quando era só a galera se reunindo, sem muito equipamento. A gente ia porque precisava ouvir alguém falando por nós, sabe? No começo, eu estranhava esse monte de celular gravando, a galera querendo fazer conteúdo. Mas hoje eu entendo: mudou, e tudo bem. O importante é que continuem ouvindo, se emocionando, aprendendo”, destacou.
‘Nutella’?
Do outro lado da roda, estão jovens como Matheus Oliveira, estudante de 16 anos, de São Gonçalo, que descobriu o universo das batalhas no TikTok. Ele conta como o movimento o ajudou a lidar com temas que, antes, não costumava refletir.
“Vi uma batalha pela primeira vez no TikTok. Era um cara rimando sobre racismo e a galera explodindo em volta. Fui procurar mais, comecei a seguir os perfis, e agora venho sempre que posso. A primeira vez que vi ao vivo, fiquei arrepiado. Aqui eu sinto que é um espaço seguro pra mim. Eu curto quando vejo os mais velhos na plateia, porque parece que a gente tá entrando num clube que já existia antes da gente. A vibe é muito real. Isso me fez até gostar mais de literatura na escola, acredita?”, compartilha.
‘É uma honra estar nesse meio’
Para Thais Lopes, de 22 anos, da Ilha do Governador, o atrativo também veio das redes — e do desejo de entender como as coisas funcionavam pessoalmente.
“Comecei a ir nas batalhas porque via os vídeos bombando nas redes e queria sentir como era de verdade. Quando cheguei na praça, vi gente de todas as idades, de estilos diferentes, com a mesma energia. Isso me ganhou. Acho lindo ver o pessoal mais velho ali, ouvindo e às vezes até emocionado. Pra mim, isso mostra que o rap e a rima não são modinha — são cultura. Se hoje a gente lota praça pra ouvir versos, é porque alguém lá atrás aguentou firme. E é uma honra estar nesse meio”, compartilha.
Sobre as batalhas de rima
As batalhas de rima do Rio nasceram como extensão viva da cultura hip-hop, surgindo em espaços periféricos e resistindo à invisibilidade social. A primeira grande batalha de MCs aconteceu em 1998, organizada por Marcelo D2 na festa Hip Hop Rio. Mas foi em 2003, com a Batalha do Real, na Lapa, que o movimento ganhou contornos mais sólidos e públicos maiores. De lá surgiram nomes de peso e um formato que inspirou eventos por todo o país.
Na linha de frente dessa nova era estão batalhas como a do Coliseu e a do Tanque. A Batalha do Coliseu, criada em 2019 e realizada semanalmente no Buraco do Lume, no Centro do Rio, tornou-se uma potência cultural com mais de 300 mil seguidores no Instagram. Este ano, inclusive, a Batalha do Coliseu foi homenageada com o Prêmio Marielle Franco por seu impacto social.
Já a tradicional Batalha do Tanque, em São Gonçalo, é referência desde 2011 e berço de nomes como Orochi, Azzy e Xamã, atraindo multidões com um estilo descontraído e envolvente. Ela acontece, desde sua criação, na Praça dos Ex-Combatentes, no bairro Patronato, e soma mais de 602 mil seguidores no Instagram. É uma das batalhas mais conhecidas da cena do rap nacional.
Medir sucesso por quantidade de seguidor mostra que já começou errado.