Na Uruguaiana, construções históricas convivem com mais uma tentativa de ordenar o comércio ambulante no Rio de Janeiro
No começo, lá no século 17, era a Rua da Vala porque passava por lá um valão levando as águas nada limpas da Lagoa de Santo Antônio, aterrada depois para dar lugar ao Largo da Carioca, até o mar – que também era bem mais perto, logo depois do Morro da Conceição. Passaram-se dois séculos até a via – já então batizada de Rua Uruguaiana (em 1865), para celebrar a rendição das tropas inimigas e a retomada da cidade gaúcha na Guerra do Paraguai – se transformar numa das mais importantes comerciais do Rio de Janeiro.
Os dois séculos seguintes não foram muito felizes para a Rua Uruguaiana que comercial permaneceu, mas foi seguidamente maltratada. No começo do século 20, a maior parte do lado ímpar foi demolido para a rua ser alargada; quase na metade do século, a rua foi seccionada – e perdeu mais um pedaço – para a construção da Avenida Presidente Vargas e suas seis pistas; nos anos 1970, foi esburacada e interditada para as obras do metrô. Na recessão gigante no fim da ditadura, a Uruguaiana virou o coração do comércio ambulante no Centro – o Rio de Janeiro assiste, já na terceira década do século 21, a mais uma tentativa de dar uma certa ordem na rua.
Em 1994, foi inaugurado o Mercado Popular da Uruguaiana, o agora conhecido camelódromo, para devolver as calçadas aos pedestres. O comércio ambulante não foi contido e o século 21 começou com seguidos conflitos entre guardas municipais e camelôs. A antiga rua da vala foi palco de muita pancadaria, mas nada que mudasse o cenário: as calçadas ficaram para os ambulantes.
Durante anos, foi preciso tomar cuidado para não tropeçar. Vendia-se de tudo: tênis, sapatos, meias, bermudas, shorts, biquínis, cuecas, lingeries, camisetas, bolsas, óculos, acessórios para celular, bijuterias, relógios, doces, objetos de decoração. Tinha anúncio de quem compra ouro e de quem compra jóias. E panfletinhos de propaganda de massagistas, strippers e outros serviços. Agora, na nova tentativa de dar ordem a esta informalidade, a prefeitura estabeleceu um número mínimo de ambulantes, padronizou barracas e reabriu a rua aos veículos.
Difícil dizer se vai dar certo, mas, pelo menos, fica mais fácil de localizar as marcas do história, como a primeira construção famosa da Rua da Vala: a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e de São Benedito. Erguida por irmandades formadas por negros escravizados e libertos na primeira metade do século 18, a igreja, recém-concluída, passou a servir, em 1737, como Sé (igreja mais importante da diocese) do Rio de Janeiro, então capital da colônia por determinação do vice-rei. Só com a chegada da família real portuguesa, em 1808, a Sé foi transferida para a Igreja de Nossa Senhora do Carmo.
Na esquina da Rua Uruguaiana com a Sete Setembro, está a resistente Casa Cavé, confeitaria inaugurada em 1860, com seus vitrais e espelhos, uma decoração inspirada em cafés parisienses, mas com culinária ditada pelos doces portugueses. O sobrado de dois andares – de estilo eclético por fora e art-decó por dentro – é uma lembrança do século 19, quando a Uruguaiana tentava rivalizar com a Ouvidor como a mais importante via comercial do Rio.
Para chegar ao século 20, é preciso atravessar a Presidente Vargas para encontrar a Casa Paladino que, inaugurada em 1906, mantém a combinação de armazém, na frente, com restaurante, escondido atrás das prateleiras – cenário típico dos estabelecimentos portugueses de um século atrás. Pé direito alto, estantes com vinhos e outras bebidas até o teto, a Casa Paladino ocupa o mesmo endereço desde a fundação. E há coisas ali difíceis de encontrar neste século 21, como uma porção generosa de tremoços e um chope escuro bem tirado. Não são contudo as especialidades da casa: os caprichados omeletes e sanduíches dividem a preferência da clientela, que pode ficar ali, calculando a idade do relógio e das prateleiras e fazendo uma viagem imaginária por quatro séculos da rua.
Publicado originalmente no #Colabora – Jornalismo Sustentável