Com a entrega oficial do dossiê para a candidatura conjunta de Rio e Niterói aos Jogos Pan-Americanos de 2031, autoridades e organizadores celebram a possibilidade de sediar o evento continental. Mas, para um grupo de especialistas, o entusiasmo esconde riscos de repetir os erros das Olimpíadas de 2016 — incluindo remoções forçadas, gentrificação e legado desigual.
O projeto propõe o Rio como sede principal e Niterói como cidade complementar. Entre as promessas, está a velha ideia da linha 3 do metrô — que não entrou na conta dos investimentos previstos —, e a construção de uma nova Vila dos Atletas na área da antiga Estação Leopoldina, no Centro do Rio, com sete edifícios residenciais.
A proposta entusiasma os prefeitos Eduardo Paes (PSD), do Rio, e Rodrigo Neves (PDT), de Niterói. No entanto, o investimento estimado em R$ 3,8 bilhões levanta preocupações entre urbanistas e pesquisadores.
“A principal questão da candidatura de Niterói com o Pan-Americano de 2031 é o montante que está sendo previsto — 780 milhões de reais só para a cidade —, e grande parte disso será investida num eixo urbano que já tem infraestrutura consolidada, com a Ponte Rio-Niterói e as barcas”, avalia o urbanista Vinícius Netto, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Para ele, o direcionamento dos recursos revela uma lógica concentradora. “O aporte financeiro grande para esse eixo pode deixar outras áreas mais carentes de fora, como historicamente aconteceu em megaeventos anteriores”, destaca.
O dossiê da candidatura promete reutilizar estruturas existentes, usar arenas temporárias e evitar obras megalomaníacas. Mas especialistas são céticos.
“É preciso cautela. A gente sabe que, junto com esse investimento todo, vem a valorização imobiliária, especialmente em Niterói, e isso gera gentrificação. Vai expulsar os moradores de baixa renda”, alerta Netto.
Ele também questiona a proposta de expansão do sistema aquaviário: “O plano fala em dobrar as docas das barcas, mas esse é um sistema deficitário, de alto custo e eficiência questionável. Pode acabar sendo mais uma infraestrutura ociosa”.
‘Faz parte de um projeto de cidade excludente’
Para o arquiteto e urbanista Lucas Faulhaber, autor do livro “SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro Olímpico”, o problema não é apenas a execução, mas o modelo que sustenta essas candidaturas.
“O risco está em diversas ordens. Os megaeventos são usados como justificativa para impor projetos que já estão em andamento”, diz. Segundo ele, “o poder público prepara o terreno para o setor privado especular. É isso que tende a acontecer na região da Leopoldina, por exemplo. Quem vai morar ali? Qual é o objetivo real desse investimento?”.
Faulhaber, que mapeou as remoções olímpicas ao lado da jornalista Lena Azevedo, relembra que, entre 2009 e 2013, sob a gestão de Eduardo Paes, cerca de 67 mil pessoas foram removidas no Rio.
“Mais do que nos governos de Pereira Passos e Carlos Lacerda juntos”, afirma. “Não são erros. Fazem parte de um projeto de cidade excludente, de valorização da Zona Sul e da Barra, criando novas fronteiras para o mercado imobiliário”.
Um dos exemplos mais emblemáticos, segundo o arquiteto e urbanista, é a Vila Autódromo, favela vizinha ao Parque Olímpico: “Eles resistiram o quanto puderam. Diziam que o local era de risco, mas a cada nova justificativa os números mudavam. No final, removeram famílias sob argumentos frágeis”.
Faulhaber completa: “Essas remoções foram violentas. Mandaram gente para Campo Grande, Santa Cruz, destruíram histórias de vida. Não foi um erro: foi um projeto. Um projeto que rompeu laços sociais e comunitários.”
‘Tem que ser relocalização, não remoção’
Para Vinícius Netto, até o uso das palavras importa: “A gente tem que trabalhar com a ideia de relocalização, jamais remoção. Remoção viola a Constituição, que garante o direito à moradia”. Ele lembra que, nos megaeventos passados, esse direito foi frequentemente ignorado.
E quanto ao legado das Olimpíadas? Netto pondera: “Tivemos investimentos importantes, como o BRT, que considero o maior legado. Mas ele se efetivou apenas no eixo Transcarioca. A Transoeste e a Transbrasil vieram depois, com anos de atraso”. Ele completa: “Foram conquistas que não chegaram a tempo. É isso que precisa ser pesado quando se fala em megaeventos”.
‘Não querem revitalizar, querem trocar a vida por mercado’
Lucas Faulhaber, por sua vez, critica a lógica da “revitalização”, termo comum nesses projetos: “Revitalização? Não. Já tem vida nesses lugares. Esses projetos querem trocar a vida por mercado”.
Ele alerta para o processo já em curso em Niterói, com projetos que priorizam studios residenciais e especulação imobiliária no centro da cidade: “Isso não traz vida, traz expulsão. E tudo feito sob justificativas de desenvolvimento urbano”.
Por fim, Faulhaber destaca que os megaeventos são apenas a ponta do iceberg.
“São justificativas para impor uma agenda urbana que já está desenhada — com pouca participação popular, pouca transparência e muito interesse econômico”.