A falta e a precariedade da infraestrutura cicloviária são motivo de indignação entre os moradores da Zona Norte do Rio. Embora a cidade conte atualmente com cerca de 498,52 km de ciclovias e ciclofaixas, segundo a prefeitura, apenas cerca de 10% dessa malha está localizada na região.
Essa é uma das queixas do professor de História Carlos Costa, de 38 anos, ciclista de Madureira, na Zona Norte. Para ele, a desigualdade é gritante.
“Bicicleta não pode ser bem-vinda só na Zona Sul. Lá sempre tem tudo… Aqui, a gente pedala desviando de buraco, poste torto e motorista que acha que ciclista é obstáculo. Falam tanto em transporte sustentável, incentivam isso o tempo todo, mas esquecem de incluir a Zona Norte nessa conversa”, reclama.
Plano da prefeitura para 2033
Ampliar a malha cicloviária é uma das metas da atual gestão de Eduardo Paes (PSD). Em março de 2023, o prefeito declarou querer transformar o Rio na “capital da mobilidade urbana saudável e sustentável” e anunciou o Plano de Expansão Cicloviária (CicloRio). A proposta previa a recuperação e a ampliação da malha para mil quilômetros até 2033.
Mas, para a publicitária Fernanda Oliveira, de 34 anos, moradora do Maracanã que vai de bicicleta ao trabalho diariamente, a promessa ainda não saiu do papel.
“Eu continuo pedalando nos mesmos trechos esburacados de sempre — isso quando tem ciclovia. Aqui na Zona Norte, nada mudou, os problemas são os mesmos. Já passou da hora de ampliarem e trazerem mais ciclovias pra cá e também pra outras áreas da Zona Oeste, que são justamente onde mais precisa”, critica.
O que dizem os especialistas
Para Aurélio Murta, doutor em Engenharia de Transportes e professor da UFF, apesar de o Rio se destacar na mobilidade sustentável, a distribuição da infraestrutura cicloviária é desigual. Ele cita estudos que indicam que regiões como Copacabana possuem estrutura para bicicletas até duas vezes maior que áreas mais periféricas.
“Observa-se claramente uma concentração dessas estruturas nas áreas centrais e de maior poder aquisitivo, como Zona Sul e Centro, em detrimento de áreas periféricas das zonas Norte e Oeste. Além disso, a conectividade com outros modais de transporte público ainda é limitada, já que menos da metade das estações de transporte coletivo apresentam uma infraestrutura cicloviária eficiente em seus entornos imediatos”, explica o especialista.
Desigualdade no acesso à mobilidade
Segundo Murta, essa configuração torna a malha cicloviária carioca “deficiente”, contribuindo para a manutenção de desigualdades territoriais no acesso à mobilidade sustentável. “Algo que só será superado se a prefeitura adotar estratégias que corrijam as atuais disparidades territoriais”, aponta.
“Inicialmente, seria necessário priorizar investimentos na ampliação das redes cicloviárias nas zonas Norte e Oeste, com corredores estruturantes que integrem efetivamente essas regiões às áreas já consolidadas da cidade, utilizando dados de demanda e estudos de deslocamento para fundamentar as decisões de expansão”, afirma.
Outro ponto de vista
Já Luiz Saldanha, diretor executivo da associação Aliança Bike, tem uma visão diferente e complementa o debate. Doutor em Engenharia de Transportes, ele destaca que, apesar dos avanços desde os anos 1990, a infraestrutura cicloviária do Rio ainda é marcada por uma divisão desigual entre as regiões da cidade.
“Isso é uma realidade. Desde a década de 1990, com a implementação das primeiras ciclovias e ciclofaixas, especialmente nas orlas, houve um avanço — inicialmente voltado ao lazer, mas que acabou impulsionando a expansão da malha cicloviária. Hoje, observamos a consolidação de uma infraestrutura mais voltada à proteção do ciclista, com ciclovias e ciclofaixas segregadas”, ressalta.
Fragmentação da rede cicloviária
Apesar disso, Saldanha aponta uma fragilidade estrutural importante: a fragmentação da rede cicloviária em regiões fora do eixo Centro-Zona Sul.
“A questão mais crítica é justamente essa fragmentação da infraestrutura cicloviária, principalmente na Zona Norte e em áreas da Zona Oeste que não incluem Barra e Recreio”, afirma.
E complementa:
“Quando analisamos os demais bairros dessas regiões, é evidente que a malha cicloviária não permite que as pessoas circulem com segurança entre os bairros. Falta conexão com estações de metrô, de trem, e com polos comerciais e de serviços que ficam fora dos grandes centros”.
Integração com estações de transporte
Aurélio Murta também destaca a importância da integração entre ciclovias e estações de transporte público, com instalação de bicicletários seguros e infraestrutura de apoio que estimule a adesão dos usuários. Além disso, ele reforça a necessidade de manutenção contínua das vias já existentes, com melhorias na pavimentação, sinalização e segurança.
“Para viabilizar tais ações de maneira eficiente, recomenda-se ainda a implementação de mecanismos de governança participativa, com envolvimento direto da sociedade civil na definição das prioridades locais, bem como o estabelecimento de critérios objetivos para alocação de recursos públicos. Por fim, um sistema robusto de monitoramento e avaliação da expansão cicloviária”, finaliza.
Qualidade e compreensão das vias
Já para Luiz Saldanha, o importante não é apenas identificar quais vias podem ser transformadas em ciclovias, mas também compreender como essas vias se constituem e de que forma podem ser adaptadas com segurança. Segundo o especialista, “é preciso moderar o tráfego e, de fato, melhorar a qualidade das ruas”.
“Não adianta apenas pintar uma faixa e chamá-la de ciclovia se a rua está cheia de buracos, bueiros expostos ou obstáculos que colocam em risco a vida dos ciclistas. O essencial é atender à chamada ‘linha de desejo’ — ou seja, aos trajetos que as pessoas realmente querem e precisam fazer de bicicleta. E isso só é possível ouvindo tanto quem já pedala quanto quem ainda não pedala, para entender por que não o faz”, destacou Luiz Saldanha.
‘As pessoas devem ter acesso facilitado aos espaços’
Saldanha também explica que investir apenas na malha cicloviária não é suficiente. É necessário criar uma infraestrutura completa, que atenda às diferentes etapas do deslocamento.
“A infraestrutura cicloviária vai além das vias: ela precisa incluir bicicletários seguros, para que as pessoas possam estacionar com tranquilidade. E o planejamento deve conectar zonas residenciais a polos geradores de deslocamento — como áreas de comércio, serviços, empregos e também de lazer. O direito ao lazer precisa ser garantido. As pessoas devem ter acesso facilitado aos espaços onde podem viver a cidade de forma plena”, finalizou.
O que diz a prefeitura
Em nota oficial, a Companhia de Engenharia de Tráfego do Rio (CET-Rio) afirmou que a ampliação da infraestrutura cicloviária segue como prioridade da atual administração. Segundo o órgão, o tema tem sido discutido nas reuniões que definem as metas do Plano Estratégico da Cidade para os próximos quatro anos.
“Atualmente, a cidade conta com 498,52 km de vias destinadas ao uso cicloviário, entre ciclovias e ciclofaixas. A meta é aumentar a presença da bicicleta como meio de transporte no cotidiano da população, contribuindo diretamente para a redução das emissões de gases de efeito estufa no setor de mobilidade”, afirmou a CET-Rio.
A companhia destacou ainda que a criação de novas rotas será acompanhada por ações de moderação de tráfego e pela expansão do sistema de bicicletas públicas. Segundo a Prefeitura, todas as regiões do município serão contempladas, e estudos técnicos estão em andamento para garantir a integração das novas rotas com a malha viária existente.