Falta de estrutura, número insuficiente de vagas e atendimento precário. Com a chegada do inverno, os abrigos municipais do Rio voltam a ser alvo de críticas. Mesmo com o aumento do investimento público nos últimos anos, relatos de pessoas em situação de rua e especialistas revelam um cenário de sucateamento e negligência.
De acordo com a Secretaria municipal de Assistência Social (Smas), a cidade conta atualmente com 2.707 vagas em 33 unidades de acolhimento. Durante o inverno, o número sobe temporariamente para 2.907 com a abertura de 200 vagas emergenciais. O número, no entanto, ainda está longe de atender à demanda: segundo o último censo, há 7.865 pessoas vivendo nas ruas do Rio, a segunda maior população em situação de rua do Brasil, atrás apenas de São Paulo.
Críticas da população em situação de rua
Para Maralice dos Santos, coordenadora do Movimento Nacional da População de Rua no Rio, o aumento de vagas não resolve o problema quando a estrutura é ruim e o tratamento nos abrigos desumaniza os usuários.
“As vagas são insuficientes e não comportam o quantitativo de pessoas que estão em situação de rua. Os profissionais que trabalham nos abrigos também são mal preparados e sem nenhuma qualificação profissional, tratando as pessoas que estão abrigadas como lixo. Isso afasta ainda mais as pessoas do serviço”, afirmou Maralice.
O secretário executivo do MNPR/RJ e pesquisador, Flávio Filho também expõe a situação de precariedade nos abrigos , com falta de infraestrutura, inclusive na época de frio.
“Esses abrigos escancaram toda de violação e a questão de justiça climática. Não temos aquecedores para baixas temperaturas, não existe um plano de construção e/ou renovação pra abrigos novos e sustentáveis. As vagas são insuficientes e os espaços insalubres”, explicou.
Flavio também já esteve em situação de rua e contou algumas das experiências que passou.
“Já fiquei em abrigo mais de uma vez, mas é difícil se sentir acolhido de verdade. Às vezes, falta cobertor, a comida vem pouca, e tem lugar que trata a gente como se estivesse fazendo um favor. Não é todo mundo que aguenta ficar. Muita gente prefere a rua, mesmo no frio”.
O pesquisador Dario Sousa, professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), diz que há reclamações recorrentes em relação às regras de funcionamento e à falta de privacidade nos abrigos — especialmente por parte de casais e famílias.
“Há muito tempo não há mudanças estruturais na forma como o Rio trata essa população. O abrigo de Cascadura, por exemplo, é uma boa iniciativa, mas ainda é insuficiente. Não se trata apenas de oferecer pernoite, mas de pensar políticas de reintegração social. E isso passa por ouvir quem está nas ruas”, explicou o professor.
Distribuição desigual de abrigos e estrutura limitada
De acordo com as informações públicas da Smas, município possui 22 Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas), que atendem casos de violação de direitos em geral, e apenas quatro Centros POP voltados exclusivamente para a população em situação de rua. Segundo o levantamento, os abrigos estão distribuídos da seguinte forma:
- Centro: 3 unidades
- Zona Sul: 2 unidades (Laranjeiras)
- Zona Norte: 14 unidades (em bairros como Méier, Tijuca, Ilha do Governador, entre outros)
- Zona Oeste: 9 unidades (em Bangu, Realengo, Campo Grande, Santa Cruz, entre outros)
Maralice afirma que a falta de cobertura é generalizada: “A carência de abrigos existe em todas as regiões da cidade. O problema é estrutural e está longe de ser pontual”.
Mais dinheiro, poucos resultados
Apesar das críticas, a prefeitura defende que os investimentos em acolhimento institucional aumentaram: nos primeiros seis meses de 2025, já foram aplicados R$ 50 milhões, valor que supera proporcionalmente os gastos totais de 2024 (R$ 92,6 milhões) e 2023 (R$ 85,2 milhões).
Durante as discussões do projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para o exercício financeiro de 2026, a secretária da pasta, Martha Rocha (PDT), explicou que pretende criar mais 600 vagas para abrigos ainda neste ano.
Apesar do aumento nos investimentos, a ampliação das vagas não acompanhou o crescimento da população em situação de rua. E o número de abrigados efetivamente atendidos também não acompanha o total ofertado.
Em 2023, a rede de acolhimento contava com 2.291 vagas; em 2024, subiu para 2.707; e, em 2025, chegou a 2.907, já incluindo as vagas temporárias. No entanto, o número de pessoas vivendo nas ruas do Rio é quase três vezes maior.
Para Dario Sousa, a rejeição de parte da população em situação de rua deve ser analisada como um dado relevante — não apenas como uma escolha individual.
“O serviço deve ouvir quem precisa dele. Um exame dos motivos que levam parte da população a rejeição aos abrigos deve ser levado a cabo. Políticas de redução de danos precisam ser postas em prática, ou os esforços da prefeitura podem deixar um número significativo de pessoas sem acesso a seus direitos”, concluiu.
Em nota a Secretaria municipal de Assistência Social afirmou que ” vem realizando investimentos contínuos para garantir o pleno funcionamento de suas unidades e a qualificação permanente de suas equipes, assegurando um atendimento eficiente e humanizado”. A pasta também informou que nos seis primeiros meses de 2025, foram registrados 22.946 acolhimentos, um aumento de 261% em relação ao mesmo período de 2024, quando houve 6.346 acolhimentos.
“A Smas destaca ainda que uma mesma pessoa pode ser atendida mais de uma vez e que o acolhimento institucional é uma medida de proteção prevista em lei e, portanto, não é compulsório. A permanência nos equipamentos depende da aceitação voluntária da pessoa em situação de rua”, concluiu a pasta.