Completam-se, neste sábado (26), 35 anos sem respostas sobre o desaparecimento forçado de 11 jovens moradores da favela de Acari, na Zona Norte do Rio, em 1990. Conhecida como Chacina de Acari, a tragédia chocou o mundo e se tornou símbolo da impunidade que marca crimes brutais no estado.
As vítimas estavam em um sítio na região de Magé, na Baixada Fluminense, quando foram sequestradas. Segundo testemunhas, os criminosos — supostamente policiais militares conhecidos como “cavalos corredores” — exigiram resgate em dinheiro e levaram os jovens para um local abandonado. Os corpos nunca foram encontrados.

‘Direitos que sempre nos foram negados’
Aline Leite, irmã de uma das vítimas, convive com a dor desde os 7 anos. Cristiane Leite de Souza tinha 17 quando desapareceu naquele dia. 35 anos depois, Aline vê na condenação do Estado Brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), em 2024, um passo para o reconhecimento dos direitos dos familiares — como a emissão de uma certidão de óbito.
“A justiça veio de fora. Isso é uma vitória para os familiares, uma vitória dos direitos humanos. Não estamos mais na escuridão. Podemos cobrar a partir de uma sentença, e fazer valer os direitos que sempre nos foram negados. Algumas medidas estão sendo tomadas, de fato, mas ainda é muito pouco diante do que precisa ser cumprido”, afirmou Aline.

Lentidão da justiça no caso da Chacina de Acari
Ela também critica a lentidão do estado e a falta de reconhecimento do desaparecimento forçado como crime no Brasil.
“O que fica é a frustração de viver num país que funciona lentamente quando as respostas precisam ser dadas a preto, pobre e favelado. Avançamos em algumas questões — ainda é pouco, mas é o caminho. Já se passaram 35 anos, e seguimos esperando um pedido de desculpas que, acreditamos, deve partir da Presidência da República. Mas temos esperança”, finalizou.
A mãe de Aline, que morreu em 2008 sem respostas sobre o paradeiro da filha, integrou o movimento Mães de Acari, criado para cobrar justiça e responsabilização do estado. O grupo ganhou visibilidade internacional, especialmente após o assassinato de duas integrantes, em 1993, por denunciarem abusos cometidos por policiais na favela.

MPF cobra cumprimento da sentença
Nesta semana, o Ministério Público Federal (MPF) cobrou o cumprimento da sentença da Corte Interamericana. A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC também exigiu a formalização de um acordo que assegure atendimento médico e psicossocial individualizado aos familiares das vítimas.
O ofício foi enviado às secretarias municipais de Saúde do Rio, Duque de Caxias e Magé, além da Secretaria Estadual de Saúde e do Ministério da Saúde.
Impunidade ainda marca chacinas no Rio
A impunidade, no entanto, não se restringe à Chacina de Acari. Um estudo do Grupo de Estudos de Novas Ilegalidades (Geni/UFF) revela que, entre as 27 mega chacinas ocorridas no estado nos últimos 18 anos, apenas duas foram denunciadas pelo Ministério Público à justiça, e nenhuma resultou em julgamento final. Considera-se “mega chacina” quando há oito ou mais vítimas.
Além disso, nesse mesmo período, foram registradas 629 chacinas decorrentes de ações policiais no estado do Rio — caracterizadas por três ou mais mortes em uma mesma ocorrência. A pesquisa mostra que as polícias foram responsáveis por 35,4% da letalidade na Região Metropolitana nos últimos anos, representando mais de um terço das mortes violentas.

O que dizem os especialistas
Na visão de Glaucia Marinho, jornalista e coordenadora da ONG Justiça Global, o Estado demonstra tolerância e até mesmo conivência ao não promover justiça para as vítimas de crimes cometidos contra a população negra e favelada.
“A impunidade em casos de graves violações de direitos humanos revela um padrão estrutural: a falta de investigação rigorosa, especialmente quando os envolvidos são agentes das forças de segurança pública. Nesses casos, raramente se observa a responsabilização da cadeia de comando, o que compromete profundamente a promoção da justiça”, afirma Marinho.
Níveis de impunidade são altos no Rio
O professor Ignácio Cano, do Laboratório de Análise da Violência (LAV), da Uerj, compartilha visão semelhante. Ele alerta que, no conjunto dos crimes violentos cometidos no Rio, os níveis de impunidade são extremamente altos.
“A proporção de homicídios que resulta em condenação é muito baixa. Pesquisas anteriores mostram que essa taxa era inferior a 10%. Não sei os dados mais recentes, mas essa é a tendência histórica. A grande maioria dos crimes mais graves permanece impune”, explica.
‘Quando os responsáveis são agentes públicos’
Segundo Cano, as chacinas deveriam ter mais chances de serem solucionadas, justamente pela atenção pública que costumam gerar — o que, no entanto, não se concretiza no Rio. Para ele, isso reflete um cenário amplo de impunidade, que se agrava especialmente quando os responsáveis são agentes públicos, devido ao medo das testemunhas e à morosidade nas investigações.

Racismo estrutural
Glaucia Marinho também ressalta que não é possível analisar o caso sem considerar os aspectos raciais e sociais que o envolvem. Isso porque, além de moradores de favelas, a maioria dos 11 jovens desaparecidos no caso da Chacina de Acari era negra. Para a jornalista, isso reflete a “naturalização dos homicídios cometidos contra essas pessoas”.
“O racismo estrutural e a criminalização da pobreza transformam áreas empobrecidas e periféricas em espaços de exceção, onde até mesmo agentes do Estado frequentemente agem à margem da legalidade. Esse episódio jamais completamente esclarecido, ilustra como a violência de estado tem como alvo preferencial a juventude negra e pobre”, afirma.
‘Urgência de políticas públicas’
Segundo Marinho, essa leniência diante de crimes cometidos contra a população negra, especialmente contra jovens, demonstra a persistência de um padrão histórico que escancara a urgência de políticas públicas eficazes de responsabilização, reparação e não-repetição.
Perfil das vítimas se repete em caso de violências
Ignácio Cano também destaca que o perfil das vítimas de chacinas se repete: são, em sua maioria, jovens, negros, pobres e moradores de periferias. Por isso, ele afirma não ver “nenhuma surpresa” ao observar esse padrão nos crimes mais brutais, embora acredite que isso contribua para que a impunidade prevaleça nesses casos.
“Se as vítimas fossem pessoas de classe média ou alta, moradoras de bairros nobres, a pressão por resolução seria muito maior. Há, de certa forma, uma aceitação social — que inclui o próprio sistema de justiça criminal — de que algumas mortes são, no mínimo, inevitáveis. Quando não, desejáveis, no caso dos supostos criminosos”, analisa o professor.
Menos recursos para contratar bons advogados
Ele conclui observando que essa realidade também se reflete no apoio dado às famílias das vítimas, que costumam ter menos acesso a recursos para contratar bons advogados, estão mais expostas a ameaças e contam com pouca proteção judicial e social. Por isso, Cano reconhece que ainda são poucos os casos efetivamente esclarecidos e punidos.
Chacina do Jacarezinho

O levantamento da UFF foi realizado após a Chacina do Jacarezinho, em 6 de maio de 2021, considerada a operação policial mais letal já registrada no estado. A ação, coordenada pela Polícia Civil resultou na morte de 28 pessoas, incluindo um policial civil.
A operação foi duramente criticada por organizações de direitos humanos. A repercussão internacional foi ainda maior pelo fato de a ação ter ocorrido apesar da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), na ADPF 635 — a “ADPF das Favelas” — que restringia operações policiais durante a pandemia de Covid-19.
Chacina da Candelária

Outro caso emblemático é a Chacina da Candelária, ocorrida em 23 de julho de 1993, que chegou a ganhar uma série da Netflix em 2024. Naquela madrugada, oito jovens em situação de rua foram assassinados por homens armados — entre eles, policiais militares — em frente à Igreja da Candelária, no Centro do Rio.
No caso da Candelária, três policiais chegaram a ser condenados, mas foram beneficiados por indultos ou liberdade condicional e, atualmente, estão em liberdade.