Houve um tempo em que o Andarahy era grande, tão grande que era conhecido como Andarahy Grande, englobando uma área extraordinária da Zona Norte do Rio de Janeiro, onde hoje estão localizados os bairros do Maracanã, Vila Isabel, Grajaú e as partes de Engenho Novo, Lins e Engenho de Dentro, próximas aos morros do Maciço da Tijuca. Pois a Tijuca – ainda lá nos séculos iniciais da colonização do Rio batizava “apenas” a floresta, a serra, o maciço, o pico. E era Andarahy Grande porque a região, na margem direita do Rio Andarahy (responsável pelo batismo de toda a região) era chamada, três séculos atrás, de Andarahy Pequeno: essa área já chegou ao século 19 reconhecida como Tijuca.
Este #RioéRua usou o adjetivo extraordinário em relação ao Andarahy Grande porque foi guiado ao bairro pelo mais recente romance do escritor carioca Alberto Mussa – a ‘Extraordinária Zona Norte’, que, apesar do nome abrangente (pelo menos 60 bairros cariocas estão na chamada Zona Norte), tem como cenário central o Andaraí, o morro do mesmo nome, e as vizinhanças da Tijuca, Vila Isabel e Grajaú. Nas pegadas da trama policial, que conduz o romance, Mussa – que já ajudou a me guiar pela Rua da Carioca – leva o leitor por uma viagem pela história dessa região em torno do “Rio dos Morcegos” – parece consenso que Andaraí vem da expressão indígena Andirá-y, rio dos morcegos em tupi – desde antes da chegada dos colonizadores portugueses até a década de 1970.
Neste século 21, é difícil, ao circular pelo que está convencionado se chamar de Grande Tijuca, ver referências ao Andaraí, comuns nos livros do maior dos escritores cariocas, Machado de Assis: Helena, personagem-título de seu romance de 1876, vai morar no Andaraí após ser reconhecida no testamento pelo pai; o Conselheiro Aires, narrador dos seus dois últimos romances (Esaú e Jacó e Memorial de Aires, ambos do começo do século 20), tem uma irmã, a quem sempre visita, que mora no Andaraí. Hoje, são muitas as placas indicando Tijuca, Vila Isabel ou Grajaú…; o Andaraí parece invisível. Na parte Andaraí das grandes ruas Uruguai e Barão de Mesquita, compartilhadas com os bairros vizinhos, os estabelecimentos parecem evitar se referir ao bairro – temos a agência ‘Uruguai’ de bancos, o salão ‘Uruguai’, o empório ‘do Barão’, a padaria do ‘Barão’ e até uma galeria ‘Tijuca’, todos em endereços do Andaraí.
Não era assim “no tempo que Dondon jogava no Andaraí”, citação que merece um parágrafo inteiro. Tempo de Dondon é um samba do grande Nei Lopes (‘No tempo que Dondon jogava no Andaraí / Nossa vida era mais simples de viver / Não tinha tanto miserê / nem tinha tanto ti ti t / No tempo que Dondon jogava no Andaraí”), inspirado por suas conversas com um antigo zagueiro do Andarahy Athletico Clube, que disputou o campeonato carioca de futebol até os fins da década de 1930 – Antônio de Paula, o Dondon, jogou lá entre 1932 e 1937. O Andarahy, fundado em 1909 por funcionários da principal fábrica de tecidos da região, construiu, na década seguinte um estádio perto da fábrica, – depois que o clube deixou o futebol, o estádio chegou a ser usado pela Portuguesa, até ser comprado pelo América em 1961.
O terreno do velho estádio ilustra bem o processo de apagamento, essa invisibilidade que vem atingindo o bairro ao longo das décadas. Nos tempos de Dondon, o Andarahy chegou a ser vice-campeão carioca, a fábrica era uma referência industrial, linhas de bonde tinham pontos no Andaraí, perto do estádio. Nas décadas de 1960 e 1970, o América mandava seus jogos “no Andaraí”. Em 1993, o América vendeu o terreno onde foi erguido um shopping – hoje batizado de Shopping Boulevard, o empreendimento, no mesmíssimo endereço do estádio, nas esquinas da ruas Barão de São Francisco e Teodoro da Silva, informa que fica em “Vila Isabel”, apesar de o mapa oficial da cidade situá-lo na parte Andaraí dessas duas ruas que, como outras, cortam mais de um bairro da chamada Grande Tijuca.

É verdade que o Andarahy Grande encolheu ao longo do tempo. Os limites atuais do bairro, estabelecidos após o fim do estado da Guanabara e a criação do ‘novo’ município do Rio de Janeiro, tornaram o Andaraí mais estreito, espremido entre Tijuca, Vila Isabel e Grajaú. Para a Prefeitura do Rio, o Andaraí fica na Área de Planejamento 2.2, Tijuca; na IX Região Administrativa – Vila Isabel; e sob responsabilidade da subprefeitura da Grande Tijuca.
O Andaraí atual tem, de acordo com o Censo 2022, quase 35 habitantes (cinco mil a menos que em 2010) e continua em torno do antigo rio dos morcegos, que também já não é chamado de Andaraí; em algum momento que a história não registra (ou este #RioéRua não encontrou), o rio, que nasce na Pedra da Mina, no alto do morro do Andaraí, passou a ser chamado de Rio Joana – é ele que corta a Rua Maxwell e vai desaguar no Rio Maracanã. A mudança deve fazer parte desse apagamento, semelhante ao enfrentado pelos próprios indígenas, os primeiros cariocas.
Alguns moradores e comerciantes acreditam que o bairro está ficando cada vez mais invisível por conta da má fama da comunidade favelada do Morro do Andaraí, vítima, como tantas outras da cidade, dos violentos conflitos entre facções criminosas e destas quadrilhas com a polícia. Outras favelas da Grande Tijuca sofrem com a mesma violência. “Mas, em Vila Isabel, as favelas estão no Morro dos Macacos e no Pau da Bandeira; na Tijuca, o tiroteio é no Borel ou na Formiga. Aqui, é tudo Andaraí, morro e bairro”, explica um comerciante, apontando as placas de ‘vende-se’ em muitos imóveis, principalmente na vizinhança da comunidade favelada.

Moradores mais orgulhosos destacam que o bairro abriga a quadra do Salgueiro, considerada a melhor quadra de escola de samba da cidade; que o próprio Salgueiro faz seus ensaios de rua na Maxwell; que o Andaraí tem outro templo da samba no Clube Renascença, palco de apresentações semanais de Moacyr Luz e o Samba do Trabalhador; que o bairro ainda conta com o Hospital (federal agora municipalizado) do Andaraí. E indicam os petiscos e a cerveja gelada do Boteko Em Nome do Pai e do Filho, os ensaios também do Flor da Mina do Andaraí (do grupo de acesso), a festa junina da Asbac, clube local…
Para lutar contra esse processo de apagamento e valorizar a história e a memória do Andaraí, foi criado há poucos anos o Coletivo Filhos de Joana, que faz questão de celebrar o aniversário do bairro em setembro: naquele mês, em 1847, um empréstimo federal viabilizou a construção da fábrica de São Pedro de Alcântara de Tecidos de Algodão (onde mais tarde nasceria o Andarahy Atlhetico Clube), localizada onde perto de onde hoje é o Batalhão da Polícia do Exército (erguido como Hospital Militar do Andarahy Grande), na Rua Barão de Mesquita (então Estrada do Andarahy Grande). Portanto, o Andaraí, mesmo com o aniversário oficialmente reconhecido pela prefeitura desde 2022, vai completar 178 anos com festa – mas segue ainda numa extraordinária luta contra a invisibilidade.