Escrevo esta coluna para ser publicada na véspera do Dia da Consciência Negra e, nesta cidade onde foram desembarcados milhares – provavelmente mais de um milhão – de escravizados trazidos da África, fica difícil fugir da data, escolhida pela morte de Zumbi, o líder do Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, região do hoje estado do Alagoas em 1695. E a história dos primeiros quilombos começa mesmo longe do Rio de Janeiro: são comunidades de resistência dos africanos que fogem da escravidão, ainda na segunda metade do século 16.
Em meados do primeiro século da colonização portuguesa no Brasil, os engenhos de açúcar no Nordeste – na Bahia e em Pernambuco – usavam mão de obra escrava: muitos indígenas e os primeiros africanos capturados do outro lado nas colônias do outro lado do Atlântico. Os primeiros quilombos surgiram no Nordeste nos séculos 16 e 17, fundados pelos escravizados que conseguiam escapar dos engenhos e fazendas – o Quilombo dos Palmares, de Ganga Zumba e Zumbi é o mais famoso, pela sua resistência ao longo de décadas.
Mas os quilombos se multiplicaram pelo Brasil, seguindo uma mesma lógica perversa, durante três séculos. Os negros, capturados na África e trazidos em condições insalubres para este lado do Atlântico, eram vendidos como escravos e levados para onde o colonizador precisava de mão-de-obra. Assim, surgiram dezenas de quilombos em Minas Gerais para onde os escravizados foram levados para trabalhar na extração de ouro e outros minérios no século 18; foram aparecendo também em São Paulo e no interior do Rio, fundados por fugitivos das fazendas de café. Na passagem para o século 19, os escravizados também foram levados para trabalhar nas novas fronteiras do desenvolvimento no Centro-Oeste do Brasil; o hoje maior quilombo, em área territorial do Brasil, o Kalunga, em Goiás, foi fundado por negros fugitivos de fazendas e garimpos.
Dos milhares de escravizados que foram desembarcados no porto do Rio de Janeiro – o mais importante do Brasil, nos tempos de capital da colônia e do Império -, muitos ficaram na cidade para servir à elite colonizadora, a partir de 1808, engrossada pela chegada da Família Real e de parte da corte portuguesa. Os escravizados africanos moldaram esta cidade, fazem parte indissolúvel de sua história, as marcas da escravidão e da luta pela sua abolição estão por todos os cantos, o coração carioca bate no ritmo do samba. Mas onde estão os quilombos desta cidade?
“Há quilombos no Rio de Janeiro?” – perguntaram, certa vez, em Salvador, a este carioca, orgulhoso do seu conhecimento sobre a cidade. “Sei que tem, mas não sei quantos. Nunca estive em um quilombo carioca”, reconheci um tanto envergonhado. Hoje, sou capaz de responder que, das 53 comunidades quilombolas do estado, sete estão aqui na capital, a grande maioria na distante e, muitas vezes, rural Zona Oeste. O Censo 2022 ajudou, mas eu até já havia sido chamado a saborear a tradicional feijoada do Quilombo Sacopã, (no alto da ladeira, vizinha à famosa lagoa, cartão postal na Zona Sul do Rio), embora não tenha chegado a ir lá. Os quilombos Sacopã e Camorim, o mais conhecido da Zona Oeste, foram aqueles que me fizeram responder “sei que tem” à pergunta feita durante meus oito anos de Bahia.
Até o Censo, na verdade, eu achava que nunca tinha pisado num território de quilombo no Rio de Janeiro. Ao garimpar os dados, descobri que está reconhecido pela Fundação Palmares desde 2005 – com Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do Incra, segunda etapa do processo de titulação – o Quilombo Pedra do Sal, área que frequento para acompanhar a roda de samba do lugar, para flanar pela região, pelo Morro da Conceição e outros pontos da Pequena África, como foi batizada pelo grande Heitor dos Prazeres (cantor, compositor, pintor, sambista) esse enclave onde o Rio de Janeiro é mais negro, nas imediações do porto onde desembarcaram aqueles milhares de escravizados.
Aos pés do Morro da Conceição, a Pedra do Sal – propriamente – é uma formação rochosa de onde eram extraídas pedras para a construção lá no século 17. Por ali, é possível subir ao morro em degraus esculpidos em passado remoto. No século 18, pescadores e trapicheiros moravam nessa área, então bem perto do mar, onde se estocava o sal trazido por navios portugueses. Antes do fim do século, a região foi escolhida para abrigar o mercado de escravos, com a construção do Cais do Valongo, quase exclusivo para o desembarque dos africanos.
Com o fim da importação de seres humanos (em 1831), esse território concentrou escravos libertos e seus descendentes e, após a abolição da escravatura, também negros vindos de outras partes do Brasil, negros que lutaram na Guerra do Paraguai e depois foram dispensados pelo Exército, negros em busca de parentes que ficaram no Rio enquanto eram enviados para trabalhar em outros estados, negros que eram maioria da força de trabalho do novo porto da cidade, expandido no começo do século. Era mesmo uma Pequena África: ali nasceu em samba carioca, começou o Carnaval como conhecemos hoje, estabeleceram-se terreiros das religiões de matriz africana. Virou um quilombo carioca, quilombo como símbolo de resistência como eram os antigos que abrigavam os escravizados em busca de liberdade.
O Quilombo Pedra do Sal, pelo próprio RITD do Incra, é uma emaranhado de lugares nesse amplo território da Pequena África, a partir do Largo João Baiana – lugar da Pedra do Sal propriamente dita, local de uma das rodas de samba mais tradicionais do Rio de Janeiro. Nas suas imediações moram os representantes da Associação dos Remanescentes do Quilombo Pedra do Sal, organização formada há três décadas exatamente para pleitear o reconhecimento da área como quilombola. Fazem parte do território reivindicado endereços nas ruas Sacadura Cabral, São Francisco da Prainha e Camerino (apenas a sede do Afoxé Filho de Gandhi, na Travessa do Sereno e no próprio Largo João da Baiana.
O processo de titulação desse quilombo carioca urbano, entretanto, deve ser um dos mais complexos do país. Toda essa área nas imediações do porto foi alvo, durante o século 19, de obras de reurbanização, com abertura de ruas, remoção ou simples expulsão de antigos moradores – no século anterior já havia sido palco de outras obras, da abertura de ruas para ligar o Centro a São Cristóvão, onde morava a Família Real de Portugal, à construção do próprio Cais do Valongo. Para complicar, a maioria dos endereços está em nome da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, que, com documentos do Império, tenta provar que recebeu uma enorme área como doação ainda de Dom João VI. É uma briga antiga, que corre na Justiça. Os representantes da entidade católica afirmam não serem contra o reconhecimento do quilombo, mas querem indenização por todos os imóveis que alegam ter propriedade que estejam dentro da área reivindicada.
Quilombolas de todas as partes do país queixam-se da morosidade dos processos de titulação; o da Pedra do Sal tem tudo para demorar ainda mais. A delimitação pode ser difícil por todas essas mudanças ocorridas na Pequena África; mas, em nenhum lugar do Rio de Janeiro, há um território com perfil quilombola mais acentuado: pela herança africana, pela celebração de sua cultura, pela história de resistência. A Pedra do Sal – da escadaria moldada na pedra aos morros e ruas da Pequena África – é um quilombo carioca.