No Complexo da Maré, um dos maiores territórios populares da Zona Norte do Rio, surgiu o projeto cultural “Leituras na Favela”. Idealizado pelos educadores e moradores Anderson Oli e Camila Mendes, a iniciativa promove o acesso à literatura como instrumento de emancipação social, com foco na valorização de autores negros, indígenas e mulheres.
Lançado em fevereiro de 2025, o “Leituras na Favela” oferece oficinas semanais de leitura e contação de histórias na Biblioteca Municipal Jorge Amado, localizada na Areninha Cultural Herbert Vianna, na Baixa do Sapateiro — região conhecida como Nova Maré (Casinhas). As atividades atendem crianças e adolescentes de 4 a 14 anos, matriculados na rede pública municipal, com duração prevista de seis meses.
“Ao alcançarmos crianças e jovens moradores do entorno, proporcionamos que eles vivenciem questões pertinentes à realidade da favela, como a dificuldade de acesso à saúde, à cultura e ao lazer. Nossas oficinas oferecem um espaço de escuta e acolhimento. O público é majoritariamente composto por pessoas negras, de baixa renda e em situação de vulnerabilidade social”, destaca Anderson.
Desafios para democratizar a leitura
De acordo com os idealizadores, incentivar a leitura nas favelas não é tarefa fácil. Eles explicam que a democratização do conhecimento esbarra em diversas barreiras estruturais e sociais. Além disso, o avanço das tecnologias e o aumento do tempo de exposição às telas trazem desafios para a concentração e a capacidade de interpretação dos jovens.
Dados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 2023, realizada pelo Instituto Ipec, revelam que 53% dos brasileiros não leram sequer parte de um livro nos três meses anteriores ao estudo. O percentual de leitores que finalizam livros inteiros é ainda menor: 27%. A maior concentração de leitores está na fase escolar — 77% são estudantes. No entanto, uma pesquisa da Festa Literária das Periferias (FLUP) 2024 aponta que 74% dos moradores de favelas gostam de ler e desejam mais acesso aos livros.
“Um dos nossos participantes contou que o fato de termos ido pessoalmente à escola para convidá-lo fez toda a diferença para que ele se sentisse motivado a participar do projeto. Isso nos mostra como o acolhimento é fundamental. Por se tratar de leitura oralizada, muitos ainda não têm esse hábito. Mas entendemos que é um processo de construção e adaptação”, ressalta Camila.

O impacto do projeto na favela
Com 30 alunos e uma equipe de 10 profissionais, o “Leituras na Favela” já percebe efeitos positivos na Maré. As crianças, segundo os educadores, chegam ansiosas para as oficinas, e muitos pais relatam que os filhos ficam perguntando sobre o próximo encontro. Isso demonstra que o projeto está conseguindo criar um ambiente acolhedor e estimulante.
Para incentivar ainda mais a participação, cada aluno recebe um kit de leitura, com livros e materiais, distribuído graças ao apoio financeiro de editais culturais, como o Pró-Carioca, da Prefeitura do Rio.
Raízes acadêmicas
O projeto tem origem em 2021, quando Anderson e Camila conduziram um grupo de estudos preparatório para o vestibular da Uerj, com dez jovens, via videochamada. As dificuldades encontradas nesses encontros fizeram os educadores perceberem a necessidade de ampliar o acesso à leitura e fortalecer o diálogo sobre cultura nas favelas.
Atualmente, além das oficinas para crianças e adolescentes, as atividades foram estendidas para jovens e adultos, até 65 anos. A intenção é expandir o “Leituras na Favela” para outras favelas dentro da Maré.
“Nossa metodologia busca incentivar a leitura por meio da conexão com os livros e as histórias, promovendo encontros presenciais, longe das telas, e estimulando a troca entre leitores. Acreditamos que o acesso à leitura amplia oportunidades e enriquece o repertório sociocultural. O livro nos permite refletir sobre nossa própria vida e também sobre outras realidades”, conclui Anderson.
Rio Capital Mundial do Livro
Em 2025, a Unesco reconheceu oficialmente o Rio como Capital Mundial do Livro, título que destaca o compromisso da cidade com a promoção da leitura, a valorização do patrimônio literário e a implementação de políticas públicas culturais e educacionais. A cerimônia de abertura ocorreu em 23 de abril, Dia Mundial do Livro e dos Direitos Autorais, no Teatro Carlos Gomes.
Ao longo do ano, o Rio sedia eventos como a Bienal do Livro, a Noite com Livros, o projeto Book Parede e a campanha Rio de Livros, que estimula a troca de livros em diferentes pontos da cidade. Essas ações têm o objetivo de democratizar o acesso à literatura, fomentar o hábito da leitura e envolver a população em atividades culturais.
Iniciativas que transformam as favelas
O “Leituras na Favela” integra um movimento crescente de projetos culturais que levam literatura para as favelas. Entre eles, destacam-se:
- Favelivro — Idealizado por Verônica Marcílio e Demezio Batista, implantou 50 bibliotecas comunitárias em favelas como Marechal Hermes e Madureira. Cada espaço homenageia figuras importantes da cultura local, reforçando o orgulho e a identidade da favela.
- Ninho de Livro — Inspirado em modelos franceses, instala pequenas casinhas em praças e favelas para a troca e empréstimo de livros, estimulando a cultura colaborativa. Está presente em locais como Vidigal, Praça Sarah Kubitschek e Parque Guinle.
- Livros nas Praças — Uma biblioteca itinerante que circula em um ônibus pelas Zonas Norte e Oeste, incluindo o Complexo da Maré, oferecendo o empréstimo gratuito de cerca de 2 mil livros, além de atividades como contação de histórias e teatro literário.
- Favela Mundo — ONG que oferece atividades culturais gratuitas, distribuindo livros e promovendo oficinas de teatro, dança e música em favelas como a Cidade de Deus, alinhada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU.
- UniFavela — Localizada na Maré, oferece cursos de pré-vestibular, oficinas de literatura e seminários em parceria com a UFRJ, além de manter uma biblioteca focada em autores que abordam questões sociais e raciais.
- Corujão da Poesia — Sarau noturno realizado três vezes por semana no Rio, Niterói e São Gonçalo, promovendo a poesia e as artes como ferramentas de resistência, expressão e fortalecimento cultural.